sábado, 13 de dezembro de 2014

XXII

por uma nuve de fumo
emerge o meu craneo calvo de olhos
as luzes da cidade projectam-se lhe na face às estaladas
rasgões repentinos e frenéticos contaminados por sombras
homens curvados como bestas insaciáveis
que paulatinamente progridem para uma certa erecção na postura
sorrindo replectos de merda na boca

julgamos poder viver ai prostitutas baratas
obrigados a assistir a todos os milagres da representação
agradecendo com todos os louvores a enfermeiras-serpentes
que faziam da nossa velhice um momento para cuidar da nossa demência
com o medicamento por longos tempos fermentado
debaixo de uma língua sem palavras

Aborrecemos-nos nas estantes do tédio
até que uma outra raiva se levantou dentro nós
como um pedido por Deus   perdido         no meio deserto
E gritámos de felicidade quando nos ofuscaram com um clarão contínuo
a imagem perfeitamente estanque duma terra intelígvel
onde pudessemos enfim suportar as paredes da cara

mas assim que aproximamos as mãos das coisas
três vultos terríficos apareceram num ápice
manifestações de um subsconciente oculto que nos aprisionava
cada vez que a nossa boca balbuciava a palavra carne

percebemos que forâmos feitos da costela de um patriarca ascético
e por isso sem gula mordemos convictamente todas as maçãs
queriamos à fina força plantar no chão raízes que nos ligassem ao húmus
mas elas apenas nos arrastaram vertiginosamente
para a nossa condição prévia de tela passiva
profanados pela difusao constante de um enredo estrangeiro e ordinario

e não só os cães nos confundiram com bocas-de-incêndio
quando nos ajoelhamos no meio das estradas
olhos fechados e boca semi-aberta
a esperar o cair da primeira gota de chuva
sobre a nossa testa

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

XXI

Vagueei pelas ruas matinais como ave de mau agoiro
murchando as plantações de sono por dentro dos dormitórios
Com a minha passagem lenta e enjoada à porta desses habitáculos
Sou inspecionado e inquirido pelos porteiros
E muito por de trás do seu queixo interrogatório
Vou rasgando os casulos para impor verdades precoces
Sobre o sentido mecânico do caminho
E o porquê das principais peças agora serem importadas
De países onde a contrafação é obra tosca de mãos negligentes
Que não sabem o que tem de responsabilidade sobre o silêncio no espaço
Lugar de longas vistas pausadas sobre horizontes ininterruptos
Sem obeliscos onanistas a intentar um poema contínuo

Faltam-lhes pulmões que não arrebentem com a pressão atmosférica
Com a vertigem e a fome obcecada por entendimentos pederestes
Porque se chegassem ao pico do Evereste púlpito do auditório do mundo
Seria para protestar contra a falta de subsídios para cumprir os desígnios
Que lhes prometeram quando se julgava que ainda era útil cantar-lhes o hino nacional
Esperando lucrar a prestações futuras toda uma carreira contributiva de benfeitorias
Coleções de fotografias a dar de comer a pobres e a abraçar pretos

São o inverso dos ciganos sentados nas soleiras exaustos
após tanto terem caminhado pelas avenidas deste mundo
mirando agora o céu de olhos lavados de quem olha e tem muitos e largos olhos miúdos
Para esquecer o negrume a lixo que se lhes encrostou nos dedos
E nunca cumprimentar por nojo todos os restantes viandantes
Que ostentam a horas calendarizadas pela inspeção militar
Pequenas mãos trémulas na lividez higiénica
Porque para esses a putrefação dá-se essencialmente por dentro


Talvez só a solidão explique tanta necrofilia a pulsar por dentro dos poetas

domingo, 7 de dezembro de 2014

Minha Geração

Lembro-me com muita inveja de um texto do Manuel António Pina sobre a sua geração, era um lamento por ter observado uma decadência desde os tempos que andava de braço dado com os seus pares em cordões humanos imensos. Depois chegou o fenómeno da divisão do trabalho e consequente verticalização dos assentos. Mas Pina lembrava-se lacrimoso desses tempos para de seguida perguntar, hoje, que era feito das juras e promessas passadas, dos gritos éticos a que ninguém chamava ainda ‘imperativo de consciência’ mas apenas fazer política.
A minha inveja para com o Pina é por eu nunca ter tido esse tempo áureo passado, quando a minha geração despoletou já foi para vir pelas montanhas a entoar cânticos a feder a coelho e tristes bichas operárias. Mal lhes nasceu o primeiro pelo púbico e as mais brilhantes gentes do meu tempo se dedicaram ao negócio da trepa e os outros, os menos atentos, dedicaram-se ao festival dionisíaco de profanação do rendimento dos pais. Não somos a geração dos indignados somos a geração da mini a 50 cts, do calhau de ganza a 5 euros e das entradas à pala.

Também por isso os protestos e levantamentos onde jovens participam se caraterizam muito recorrentemente por não ter uma agenda ou uma proposta. Eles estão completamente alienados da sua capacidade fabulatória e imaginativa sobressaindo a uma raiva ontológica que nunca saberão converter em ideológica.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Agora, Agora

Até podiam ainda existir
teclas sãs na máquina de escrever
mas nós rasgamos os pulsos para desencravar as viciosas
e no seu tossir velho            enferrujado             ritmam um laborar interminável
contra o abismático precipício da escrita.

Miramo-nos nessa poça narcísica
Borrão confuso que afirmamos lúcido
Ter tão claras formas e significantes traços
Crentes tão ferverosamente numa identidade

Mas o atento leitor é como inversa Circe
Devolve progressivamente a ideia à forma
Sendo claro porque é que o papel a ser higiénico
Tem sempre por fim o autoclismo.

E regressamos a casa para que carpideiras pousem nos ramos
Das cicatrizes que carregamos nas costas
Onde o mestre da diligência é o pai
Cujo reconhecimento queremos conquistar pelo martírio.

domingo, 16 de novembro de 2014

XX

Confio palavras como sapatos a uma imensa cidade de pensamentos
Coroam-se marcas de pegadas em ruas sem passadeiras
E não há medo de enveredar por todas as vias
Nenhuma será errada ao confronte com o atropelamento
Porque queremos violar segredos contra as têmporas das cascas
Esmurrar-lhes verdade sobre a persistência dos antidepressivos.

Há tanto tempo que são domesticamente chocados
Pelas nossas mães enquanto falam da telenovela do nosso passado àureo
Com todos os detalhes nobiliárquicos sobre a origem da família e do seu triunfo sobre a selva.
Mastigamos suavemente a doçura com que nos chamam bárbaros
Por termos habitado o lado de dentro da chama
Entrado pela estreita portinhola deixada por versos mortos
Dos quais escolhemos ser altares paleontológicos

Os corvos cagam-nos em cima
É o mesmo desdém fatídico com que os turistas fazem poses por cima de nós
Expondo as nossas partes íntimas para as suas câmaras fotográficas
Trazendo para casa uma estranha forma de cumplicidade entre os seus sorrisos
Grandes positivistas apostos em ter descoberto toda a dinâmica da evolução da civilização
Sem nunca terem provado a carne da melhor prostituta de Camden Town.

Estaremos para sempre nesta fornalha
alimentada pela propulsão do monóculo à luz solar
sussurrando entre os ouvidos os tempos do escuro
em que fazíamos sexo felino pelas sombras das avenidas
sem livrarias a venderem anuários científicos como jaulas.

Nós que fôramos completamente compreendidos porque incompreendidos
Mas que ao acordarmos no colete-de-forças da curiosidade desses pedófilos
Temos ataques de raiva e blasfemamos até a poesia por nos ter denunciado
Porque é contra a nossa natureza que nos erguemos
Mas não se enganem
Estamos completamente sãos.

sábado, 8 de novembro de 2014

Condição Humana

Ao chegar a um Quintal dum amigo, ele convidou-me para ir observar um raro (para ele) fenómeno. Apresentou-me três galinhas e um pato. O pato segundo ele fazia tudo igual ao que as galinhas faziam, empoleirava-se nos mesmos sítios, comia a mesma comida, até lhes tentava imitar o cacarejar, muito embora tivesse lugar próprio, ração própria e grasnar também ele próprio.

- É por só ver galinhas à volta que o pato pensa que também é uma galinha - convidou-me o meu amigo a interpretar
- É exactamente essa a perversidade do termo 'condição humana' - rematei

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

XIX

Era realmente desesperante passear pelas ruas
Ver tantos corpos pendurados nos lampiões

Alguém me dê a mão disse o canibal

Mas o individualismo permanecia até na recusa a ser estrume

A revolução social tinha sido sobretudo motivo de lepra
Onde toda a gente sabia de cor uma canção
A liturgia era única coisa ainda sacra
Ninguém queria afogar-se na solidão

XVIII

Cidades a arder
Cadelas a lamber desenfreadamente as nossas mãos cheias de petróleo
Se soubessem que as suas mães lá moravam
Não recebíamos tantos broxes

XVII

O vómito é apenas uma forma de procurar as moedas nos bolsos
As unhas com sangue morto esgravatando o escuro dum vazio
Não importava para o repúdio dos portadores de moleskines
Se era alheio ou próprio

O esófago inflamado também
Pela pornografia gratuita das histórias dos nautas
Nós que estávamos amarrados a um nojo pelos tomates
Reincidentes confessando a crianças o nosso crime
Obrigados a participar numa política pública de saúde
Onde não era absolutamente claro se a psicologia inversa
Não é a responsável pelo pecado.

Olhávamos sôfregos para as mentes brilhantes
Esperando acordar de manhã com uma salvação na caixa do correio
Nem que fosse paga a suaves prestações por uma subserviência consentida

Mas havias nos seus olhos uma assustadora cor dourada
Estranha à prosódia do respirar das árvores
E restava-nos a conversa com os ratos mortos no chão
Que nos confessavam não terem há várias décadas
Algum fruto podre na terra

Estávamos famintos
Julgámos que havia paternalismo no terem criado contentores sanitários
Por isso alimentamo-nos das estantes e do todo o lixo que lá encontrámos

As nossas mães choram a ver os nossos antigos retratos


Mas não foi só isto que nos levou à bulimia 

domingo, 19 de outubro de 2014

totem

ao Bruno



Cheguei ao largo da vila
não havia nada que sinalasse uma rotunda
mas as gentes andavam todas à roda
em diferentes diaturbes ensimesmadas
o solipsismo expresso na sua rapidez furiosa

e eu mergulhei no meio da multidão
olhei cientifica e atentamente  com a cabeça à roda
horas seguidas de tamanho movimento circular
afogando-me de enjoo e escárnio

subitamente todos param e expectam-me com um olhar de repúdio
pela primeira vez experimentam uma sintonia
todos os ninhos ligados por pontes
escorre-me vómito pela boca

todos eles conseguem identificar as barbas dum marginal

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Peça a quatro mãos escrita por uma

Espanca-me
Não me construas qualquer manta de retalhos afetuosa
Deixa a harmonia da minha mundividência permanecer intacta

Eu não quero ser temido
Eu quero continuar a temer
O que acontecerá quando deixarmos de trancar a porta do quarto à noite
Que seres fantasmagóricos poderão invadir a nossa sombra
Com palavrosas promessas e incitamentos a vícios

Deixem-nos bater furiosamente mea culpa contra o peito
Em vez de fundarem cooperativas que o alcatroam por dentro
Enquanto nos afastam das crianças para mútua proteção

A haver um abismo queremos que seja o nosso
Como a pianista enviava cientificamente cartas ao seu aluno
Sobre como queria ser fudida e insultada

Nós aceitamos a morte
Mas por vaidosismo
Queremos saber todo o ínfimo detalhe

Araté

A insignificância dos meus dedos não produzirá ao sol coisa nenhuma,
Para o homem sem talento escrever poesia é uma perversa forma
De gostar da punição do arame nas mãos

Os dentes estão partidos mas não é de trincar caroços
Não há nenhum âmago do qual sejamos particularmente lúcidos
Apenas o desígnio de ser na ampulheta
A areia usada para ponderação do tempo
Somos mar e prometeu
O sorriso miúdo de quem tem a ergonomia perfeita
Para poder ser o melhor broxista da cidade
Onanistas decadentes para a ternura ofensiva das musas
Enquanto alimentamos ódio pela sua compreensão e pena
Pendurando no peito os cadáveres de todos os nossos assassinatos

Mas ainda nos agarram pelo pulso para passeios sentimentais
Nós que tanto tentamos avisar-lhes com a verdade
Sobre a íntima origem da nossa vontade consporcatória

Não cites Freud meu amor
Isto não é uma patologia psíquica para as receitas médicas de falsos profetas
Isto é o basilar e fundacional de todo o nosso mausoléu
Porque preferimos a pneumonia às camisolas com criancinhas dando as mãos
A toda a parafernália que é oferecida na sopa dos pobres por almas caridosas

Deixa-me e aceita-me enquanto demónio
Honrada solidão
A virtude está do meu lado

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

XVI

À luz de imensos focos de vermelho fúnebre
eu sento-me                     uivo                    escrevo
A imagem da criança esventrada pelo insaciável bico
O delírio da mitologia cosmopolitana a assegurar as suas camas
As torres com imensos olhos em chama por vida
Tantas enormidades estrangeiras aos calos das nossas mãos

Passo na rua levantando a saia para mostrar a minha cona
Para habitar o regozijo geral machista do tempo
Infiltro-me no vácuo dos demais usantes de chapéus
Canto os nós das forcas sobre as palavras
Imensas boias de sangue pulverizando reflexos
rio pantanoso onde concentro os meus dentes nos peixes mortos

Sou tão imensamente ávido e carnívoro
Que renasco em pedestais dourados em cidade santa
Em mosaicos a conhecerem o sol às chapadas na cara
Imensa turbe branquílinea e sã da sua meditação
Que a poesia seria despojada de sentido linguístico
Para ser apenas os dentes gementes ao trago

Ah mas tanto bulício infame e seguidista
Que tem os quatros charros aos quais à luz me sento e escrevo
Uma febre totalmente composta para lambermos as beiças
Porque é a amargura constrita por uma trela curta
Onde largamos em versos para o gáudio salvífico
Da corrida de galgos de quem fez todas as apostas

Derretemos em mais uma gota de cera
Subitamente tudo ganha em cor de tudo
Onde tudo é verosímel e policromático


Iluminamos a sombra

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

No pântano disforme que já nem os reflexos absorve, os crápulas são obrigados á implosão do seu onanismo, têm estrias por todo lado reflexo da sua vaidade, não por alguma forma de ligação a alguma mitológica concepção de real, mas pelas medalhas de ouro que trazem no ânus, saliva inane dos seus pares. Eles vivem no canibalismo do plástico no que isso poderá ter de menos nobre, vivem de uma antropofagia do nada que os edifica. Do cimo da montanha, parece que foi vista chegada do céu uma pedra com uma só palavra cravada. Depois tantas vezes recitada que os passos dos mamutes agonizados deixaram de ser contínuos, para ascenderem finalmente a uma manifestação de espontaneidade e criatividade. Esse pobre mundo literário feito de gente que em primeira mão cospe sobre o real, por se sentir uma torrente a contorcer-se pelas pedras sem contudo fecunda-las. Que esperáveis vós que vestiram os farrapos dos mendigos a noites agendadas por outrem, como o lobo veste a pele do carneiro para devorar uma manada, mas que a histeria da turbe só vos devorou a vós, vós lobo de vós próprios. Que esperáveis vós que hastearam como bandeiras de revolucionarismo pós-vanguardático as vossas tolhas das cozinhas, sem notar que nela ainda estava as migalhas do vosso repasto a todos os títulos burguês e normopata. Mas quando a fúria dos lobos uivar a sua revanche sanguinária, como fugirão? Como Luis XIV, a vossa vaidade é tão grande que mandaram cunhar nas moedas o vosso perfil. Mas quando os adolescentes espremerem o pus para uma água alquímica, para onde fugirão?
As vezes torna-se tudo tão claro, até o porquê de já andarem a cavar um panteão. É tragicómico ver essa luta estropiada de cocotes procurando ter a epígrafe mais fulgurante.
Já agora

Eu quero a das pedras no rim para construir castelos.

domingo, 5 de outubro de 2014

W.C.

o urinol acciona o autoclismo antes de eu mijar

Demonstração matemática



Mergulho na escuridão solitária das minhas pálpebras
o ruminar incessante dos meus pensamentos cresce
enquanto vai ficando calva a minha inocência

e pergunto-me
se eles são barcos desvelados carregando vida
ou se a vida semeia correntes marítimas de mentira
se há veneno na ordenação fatídica das vertiginosas plataformas
ou se a terra esboça uma sociologia alquímica sobre a pulverização do crime

apesar do rubor infantil das minhas saias ser inalienável
vou acumulando a sedução de pegadas várias sobre os meus braços
depois numa orfandade mais madura habito esta cidade perdida
onde não é certo se o bailado das gentes produz algo de vital
ou se tudo é apenas tentativa de coagulação
abafo em ruído
para o silêncio do grande palco.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

S.

Conhecemo-nos nas redes sociais (sim isto é um relato pós-moderno com o selo do continente estampado nas nádegas) ela adicionou-me. Falamos pela primeira vez, ela não era muito assídua na conversa, dava os habituais tempos de espera de quem não quer parecer desesperada. A conversa durou cerca de 30 minutos e ela depois desligou. Voltamos a esse hábito duas ou três vezes, tentei meter a conversa do costume sobre gostos e locais onde saía, disse-me que morava em Santarém, estudava no Porto, não saía muito. Depois desapareceu durante uns meses até que voltou a entrar em contacto comigo, era Verão havia o Serralves em Festa e eu puxei para nos encontrar-mos por lá mas novamente o meu convite foi declinado. Voltou a partir do chat e eu fiquei por casa a fumar a minha solidão. Muitas horas volvidas reapareceu com a interpelação ‘estou toda molhada’. Eu fiquei surpreso não só por não ser usual as mulheres confessarem tal coisa perto de mim mas também porque não é usual elas ficarem dessa forma à minha beira. Agradeci a confissão, perguntei-lhe a que se devia e ela rematou que se estava a masturbar. Resolvido o enigma, incitou-me a masturbar-me com ela, proposta que eu aceitei verbalmente apesar de manter como um pornógrafo frustrado sempre com as mãos no teclado. Imaginou uma situação em que estávamos no carro após eu ter ido busca-la a casa, tínhamos parado num bosque e eu tinha começado a despi-la sem pedir licença. Eu usei a minha etiqueta proto-burguesa com expressões como ‘depois entro dentro de ti’ e ‘gemo de prazer ao ver a tua casa a contorcer-se’ mas ela cedo marcou a vontade de querer passar um degrau acima: contava-me como queria o meu caralho dentro da sua cona a parti-la toda enquanto lhe espetava o dildo no cu, palmadas no rabo, pirocadas nas bochechas e esporradelas na cara. Admito que foi um pouco estranho para mim apesar de me ter narcisicamente como libertino, terminado o filme compreendi o porquê de ela ter saído do chat das outras vezes: ela apenas queria as redes sociais para ter este tipo de conversas. Tinha namorado, chamado G., e dizia que lhe era completamente fiel, ele sabia de esta prática e haviam combinado as suas regras: apenas mensagens nada de fotos. Às vezes, contava-me ela, G. tinha ciúmes, aparecia-lhe em casa repentinamente para terminar o festim, muito embora ela tinha o hábito de se estar a masturbar enquanto falava com G. e outros homens ao mesmo tempo. A pergunta que me surgiu na mente era como seria possível os pais não repararem que entrava um rapaz no quarto dela tantas vezes para se envolver com ela, a resposta foi simples ‘ eles sabem que eu preciso’.
Tinha-lhe sido diagnosticado primeiro uma perturbação de personalidade boderline mas depois tinham afinado para outra doença ainda mais sedutora para o fetiche social: ninfomania. O pai, homem conservador e católico, ficara inicialmente perplexo mas ao ver a sua filha atulhada em drunfos, compreendeu que o bem estar da sua filha passava por viver sem comprimidos e saciar a sua vontade, quanto a S. adorava foder e considerava ser algo de extremamente identitário e revolucionário na sua personalidade, enunciava que a sua vagina eram as suas garras e não queria abdicar da sua liberdade, o pai, G., mãe, o irmão apenas tinham de se conformar com isso.
Fiquei curioso quanto ao seu processo de descoberta sexual, relatou-me como aos 15 anos tinha ido à sala e aguardado que o seu irmão fosse à casa de banho para ficar sós com um amigo dele. O miúdo, como o irmão, tinha menos dois anos que ela, ficou atónito ao ver o comando da playstation lhe ser retirado das mãos e sentir a sua mão ser levada por S. até a vagina – ‘diz ao meu irmão que vais te embora e depois entras à socapa no meu quarto’. Depois da sua primeira aventura com esta presa, S. foi meses depois à esteticista depilar-se. Tinha-lhe sido incumbido um homem porque supostamente só deveria tratar lhe das pernas, mas mal o trintão se preparava para sair do gabinete, S. pegou-lhe na mão e fez a brincadeira que fez com o amigo do irmão, contudo sem sexo vaginal – ‘era demasiado velho para mim’. Ainda hoje falava com eles os dois, chamava-lhes as suas crias, fazia sessões de masturbação à distância diariamente bem como conversas telefónicas sobre temas do quotidiano.
Uma vez também me ligou, S. não tinha grande coisa a dizer, gostava de filmes de acção, Nicholas Sparks e de apanhar sol, talvez por isso a conversa esgotou-se em 20 minutos. Houve um daqueles silêncios em que nos parece fazer ver a cortesia a esperar a despedida, mas subitamente sussurra-me ‘ estou a masturbar-me desde o início da chamada’. Eu fiquei mais uma vez abananado com as palavras dela e senti-me um voyeur punheteiro enquanto ouvia os gemidos e orgasmos múltiplos dela. Ligou me mais uma vez e o ritual repetiu-se. Á terceira foi extremamente fastioso e monótono. Á quarta deixei de atender.
Com mais meses em cima voltou à carga ‘ Bunny tenho saudades tuas’, eu voltei a insistir para nos encontrarmos pessoalmente, devo admitir que mais que o sexo procurava conhecer a pessoa, em S. fascinava-me a sua força e visceralidade, a sua capacidade de se impor e de se aceitar enquanto tal sem se deixar comer pelas tretas positivistas dos psiquiatras. Mas S. não arredava, queria ser fiel ao namorado e não queria sexo. Propus-lhe que fossemos amigos e que nos encontrássemos sem nenhum propósito outro senão o da conversa e do álcool. Ela rejeitou vezes sem conta, nenhum de nós cedeu no braço-de-ferro, eu recusava-me a ser mais um dos fantoches dela e ela recusava-se a encontrar-se comigo. ‘Com quantas gajas já fodeste, bunny?’ – eu fui à minha lista, contei e apresentei-lhe o meu relatório, ela retorquiu que já não queria nada comigo, eu estava demasiado ‘mastigado e batido’. Tive de aceitar a recusa dela.
Numa Sexta-Feira quando ia a caminho do Porto recebi uma mms contendo dois redondos seios com a ergonomia adequada para poder caber na palma de uma mão. Perguntei-lhe o que significava aquilo – ‘apeteceu-me, estou muito triste’. O médico tinha-lhe dito que os seus ovários estão a estropiar, eu inventei uma miscelânea pseudo-psicanalítica defendendo que talvez o ímpeto sexual desacerbado do seu corpo fosse apenas uma vontade de reproduzir enquanto ainda fosse possível – ela riu-se muito e achincalhou o meu pudor. Voltei a tentar vê-la pessoalmente, ela declinou, o braço de ferro voltou e acabou como de costume – afastamento durante mais uns meses. Durante esse tempo fomos falando, S. conseguiu ser fecundada pelo namorado e debateu-se entre a sua vontade de ser mãe e a importância do curso de medicina por acabar. Acabou por abortar. Acabou com o namorado, voltou para o namorado, passou-se mais um ano onde contactamos muito esporadicamente.
Até que um dia quando estava a dormir num sofá do plano b senti uma mão no cachaço a acordar-me, levantei a cabeça e disse: está tudo bem João, estou bem a sério. Mas era uma cara seráfica de olhos de mel e de lábios finos – sou eu bunny, a tua mummy. A minha bebedeira não me impôs uma resposta certa ao enigma, lembro me do cheiro do cabelo castanho claro no meu nariz enquanto uma língua me passava pelo pescoço, o meu pénis a ser acariciado por fora das calças e tentei beija-la ao que ela se afastou e riu-se – sabes que sou fiel ao G. . Aí tudo fez estupidamente sentido para mim e dei um salto de estupefação – és um porco nunca me ligas nenhuma. Respondi-lhe que não era bem assim enquanto olhava à volta com medo que alguém estivesse a ver a cena. Vi um amigo meu a observar-me enquanto se ria e chamava o resto da matilha para presenciar. Não foi boa ideia, ainda hoje sou lembrado pelo estalo que levei de seguida.
No dia seguinte recebi uma mensagem a convidar-me para ir a casa dela com tudo explicitado: hora, local, indicações e pedidos de perfume. Apareci à porta bastante nervoso e assustado com a expectativa de não conseguir saciá-la como ela desejava. Entrei em casa, ela convidou-me para o sofá e apareceu outro rapaz. Tudo parecia estar a correr bem quando me apercebi que não era o colega de casa dela mas sim G., na minha cabeça tudo parecia simples: G. ficou com ciúmes e quis me encher de porrada para largar a namorada. Levantei-me prontamente cerrando os punhos e caminhei na direção dele – o meu primo ensinou-me a regra geral das porradas, quem dá a primeira bem dada ganha sempre. S. pôs-se no meio e disse me para me acalmar e respirar fundo. G. continuava sentado no sofá embora aparentemente nervoso. ‘Pedi ao G. para fazer sexo contigo mas concordamos que tinha de ser á frente dele e não nos podemos beijar’. A minha pergunta foi, claro, porquê eu? Ao que ela me respondeu tal como muitas outras mulheres – não és só tu. Relaxei um pouco tentando-me convencer que se aquilo seria natural para eles também o poderia ser para mim. G. ofereceu-me uma ganza, eu pedi que pusesse no youtube o shine on you crazy Diamond dos pink floyd. S. começou a desapertar-me as calças e enfiou-me dentro da boca dela, eu gemi pleno de sentimentos confusos até que olhei para G., este parecia incomodado mas também resignado. Aguentei aquele número um pouco por estupidez, sentia-me extremamente mal por estar a infligir dor ao rapaz, até que S. se despiu e os seus olhos ficaram consumidos de prazer e excitação, S. explicou-me: o G. adora ver me foder. Relaxei um pouco as leituras de Paul Ricoeur e comecei a aproveitar-me da vagina apertada de S. sem deixar de me questionar tantas vezes como seria possível ela foder tanto e ainda ter aquele formato tão apetecível. S. falou comigo com o registo hardcore do costume ‘cona’, ‘caralho’, ‘esporra’, ‘faz me sangrar’ etc. Havia nos seus olhos um misto de sofrimento e alívio, não sabia bem se estava a fode-la ou injetar-lhe morfina. S. começou a ser cada vez mais assertiva e a requerer ainda mais da minha performance sexual até que os seus pedidos se tornaram insuportáveis para G., este aproximou-se, deu-me uma palmada nas costas e disse: ‘está boa puto, podes largar’. Por cortesia e por respeito eu aceitei, sentei-me no sofá a assistir ao corpo de S. a arquear-se e vociferar: até hoje nunca vi sexo tão à bruta como o que eles faziam. Terminado o acto, G. foi tomar banho e S. aproximou-se de mim. Beijou-me loucamente, sentou-se em cima do meu pénis, cavalgou-me violentamente, apercebeu-se que o meu orgasmo estava perto e saiu para que eu ejaculasse na sua cara. Pegou no meu telemóvel e tirou uma selfie com o sémen a escorrer-lhe pela face. Pediu-me que guardasse a foto e que me masturbasse recorrentemente a vê-la. Eu anuí e pus a minha maior cara de frustrado/revoltado pois G. acabara de sair da casa de banho. Ele pediu-me desculpa por me ter interrompido arguindo que eu não estava a dar conta do serviço, aceitei o reparo e disse-lhe que já tinha tido uma namorada que tinha acabado comigo por ser mau na cama. G. riu-se, trocámos os ‘é fodido’ do costume e fui-me embora.
Quatro meses depois, S. ligou-me a dizer que estava grávida, perguntei-lhe se era do G. ou de qualquer outra rapaz que tinha sido presa dele(s), ela disse me que tinham feito o teste e que era mesmo de G., nunca me parecera tão feliz.

- um dia tens de escrever a minha história
- já te disse que só escrevo poemas e maus


Aviso



A revista Apócrifa prepara-se para lançar como tema Cerberus a.k.a o cão da morte. Enquanto Aníbal Luxúria Canibal se encontra distraído a espetar facas em si próprio, os restantes cães já reagiram. A cadelinha laica condenou veemente a intenta por julgar que existe uma clara vertente propagandística na publicação semanal organizada pelo defunto Colectivo Pré-Contemporâneo, segundo a mesma, a subjugação de todo o ser animado a questiúnculas políticas sem nenhum relevo para a redenção da terra pode ter consequências inestimadas para a oxigenação da vida. Posição diferente assumiu Rex o cão polícia que considerou normal haver este tipo de iniciativas por parte de jovens ‘é melhor andarem a escrever textos do que metidos na droga ou no PAN – estamos fartos de auto-empossadas vanguardas da classe operária’ e acrescentou ‘desde que esteja tudo dentro da normatividade jurídica não me parece haver grande problema’. Já o Snoopy tem muitas dúvidas em relação ao virtuosismo deste tipo de iniciativas, relembra que adulterações dos nomes podem ser particularmente injuriosas tal como a que foi feita por Snoop Dog, indivíduo que não só nunca pediu desculpa publicamente pelo seu acto como demonstrou desprezo oportunístico na mudança de nome para outro que fosse mais vendável em face da sua nova ‘orientação musical’. Esta não é a primeira notícia de queixas semelhantes, veja-se o caso dos herdeiros de Sir Camelot que ficaram atónitos quando apareceu um actor de filmes pornográficos com o nome ‘ Sir Cum a Lot’. Contudo, os detentores oficiais de toda a obra material e imaterial de mitos civilizacionais defuntos não vão esperar que tal ofensa ocorra de novo ‘só nós podemos retirar proveito económico dos trabalhos deles’, assumiu publicamente o cão David, ‘a minha vida toda passei a fugir de um monstro de bullying chamado Doberman chamado Talento que andava sempre com um Bulldog chamado Perícia Crítica’ – (nota: esta informação pode parecer desenquadrada mas o autor considera que toda a questão biografista-ó-confessional tem sido injustamente desprezada pelos críticos literários’).  Já a caniche de apartamento, também presente nesta categoria genérica obituária, apareceu a ladrar durante uma ocupação ao lidl enquanto mijava no talho flores de plástico como etiquetas a dizer: obrigado por me defenderes meu cão-de-fila / afinal sempre posso morrer em cada verso meu que é lido em público / mas tu estarás lá sempre para mim’. Quanto ao lobo-das-estepes, herdeiro da parte remanescente da obra, observou-se uma curiosa reacção : ‘pá esses putos estúpidos deviam largar a Porfírio e malhar masé nos cabrões do Gota Institut – estou farto que me carimbem o cu!’.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Toda a verdade que encerro: O fim

Caminho em volta dos abismos, pelas estreitas margens que ainda permitem a minha passagem. Certas pessoas admiram-me a coragem, chamam-me visceral, mas poucas ou quase nenhuma seriam as que queriam acordar do meu lado. Sou uma espécie de espécie rara que gostam de visitar numa feira de aberrações, engaiolado à devida distância de segurança das crias. Depois os discursos paternalistas de contingência: ‘vês o que dá meteres-te nas drogas, João, porta-te sempre direito’. É mais fácil culparem as drogas, apesar de eu nunca as ter consumido, porque a ausência de resposta para as minhas perguntas é muto mais aterradora. O cidadão comum prefere caricaturara-me, reduzir-me à insignificância de um conselho tão pobre como o que dá a seu filho.
E a solidão permanece, eu que de tanta coisa me rodeio acabo sempre solitário. A vida é um conceito fictício criado pelo eu, o eu é um conceito fictício criado pelo corpo, mas os corpos são aglomerações da matéria, contingências ridículas e fantasmáticas. Para quem é ateu e não acredita na alma, é atroz observarmos ao canibalismo dos corpos que se munem de uma justificação, dizem ser um eu que precisa de sobreviver, com esse argumento absorvem matéria alheia. O corpo é um violador por natureza, um bandido, um pilhador, um criminoso. O sémen junta-se ao óvulo, cria-se o embrião vampiro de sua mãe, depois o recém-nascido vampiro dos seus pais, depois a criança que come, caga, come, caga e continua a comer, comer, comer tudo o que lhe rodeia quanto pode absorver. É grotesco mas esse corpo ganha formas cada vez maiores na proporção exacta da imoralidade do seu crime. Depois cansado do sangue inocente das suas mãos descobre o abismo, pretende voltar a retribuir ao mundo tudo o que lhe roubou, dispersar-se na largura dos astros, devolver matéria à matéria, unir-se à terra e alimentar as larvas. Uma vez destruída a unidade, a contingência do corpo é destruída e espalhada pulverizada por outros corpos também eles sedentos de matéria embora ainda não conscientes do seu crime. Viver é o acto de ignorância e infantilidade quanto à sua condição de besta insaciável.
Claro que o eu, perniciosa construção do corpo, volve-se em argumentos de medo sobre a morte. Repudia-a e pendura-lhe mitos infindáveis para que o corpo não se destrua, decapitando o eu. O corpo que desejar a morte, tem de saber alhear-se dessa ditadura que o eu lhe crava. E quando a morte caminha, o corpo alheado do eu enche-se de paz, sorri, por encontrar finalmente o descanso de ter que parar de alimentar o eu. Chega um estado de mera contemplação do que lhe rodeia, sem intuitos de comer, foder, beber ou fumar. Entra em sintonia perfeita com o Cosmos. Percebe que lhe pertence a ele mais que ao eu, e se apenas pertence ao Cosmos está sempre acompanhado, se se dispersar em outros corpos continua a fazer parte de outra coisa maior. Morrer é o único acto que permite o fim da solidão e ter por irmão tudo em tudo. Ser. Genuinamente e despojado de qualquer intuito castrador.
Para mim morrer é salvação. Morrer é o fim dos pesadelos, dos suores frios, dos traumas, dos gritos a meio da noite, da infâmia que me percorre o corpo, dos vícios, das ressacas, da humilhação, das ânsias, da dor que me consome todos os dias. Morrer é também o fim do sentimento de revolta por ter sido sempre rejeitado pela sociedade, pela família, pelos pares. Fim da vontade de matar quem me agrediu diariamente. Fim de quem me tratou como bastardo. Fim de ter de habitar as montanhas de Zaratustra. Fim da vontade de dinamitar a ordem societal que me castrou os sonhos. Fim do nojo da minha nudez e do ódio por quem sou. Fim da minha impotência e esterilidade. Fim dos meus sonhos e aspirações ridículas. Morrer é fim. Morrer é paz.

( * * * )

O lobo das estepes entrega-se ao julgamento dos carneiros para que estes possam rejubilar e sentir as suas certezas reforçadas. Há festa no condado. Hoje é dia de alegria. A sua pele dará um bom casaco para o vice-rei.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Olímpia

Tenho em meu profundo crer que Olímpia já fora humana e por isso penduro o quadro de Circe na parede do meu quarto, para que ela possa todos os dias lhe prestar homenagem. Não julgo ofender a verosimilhança com tal crença, por dois motivos elementares, primeiro, porque se toda a crença é fabulação humana não vejo porque motivo me deva sentir amputado de poder moldar a minha, segundo, porque me parece ser a literatura, e perdoe-me a ousadia desta afirmação, o refúgio onde nos é permitida a fuga da lucidez niilista e corrosiva para especularmos e inscrever-mos sobre as nossas pirâmides os seres que dançam no nosso subconsciente e imaginário colectivos.
Olímpia terá sido com certeza outra coisa que gata, quando se deita no meu colo ronronando por vezes vejo o típico olhar desconfiado de uma grande mulher perante o que escrevo. Debruça-se sobre as linhas e reflecte pausadamente, depois olha-me com o fastio de quem conhece os interstícios do verdadeiro belo e parte com a enorme elegância régia da sua cauda. As grandes mulheres são assim, ligam pouco aos poetas, sabem que eles são ávidos de florestias e rodriguinhos e que da sua arte não surge nada de relevante para a resolução dos mistérios da vida. Por outro lado, como as belíssimas mulheres, Olímpia concede-me por vezes o direito de a fitar olhos nos olhos após trepar para o pedestal, não obstante o meu corpo ser maior que o seu, ela adora colocar-se acima de mim e com o olhar diz-me: venera-me. E qual imperatriz amazona eu realmente lhe obedeço e fico espectando-a com a veneração babada para lhe saciar o ego. Ela sabe que tem este poder de deslumbre sobre mim, consegue ler nos meus olhos a pura submissão e a frustração por não acordar no corpo dela a cada manhã. Já me cansei de lhe pedir para que trocássemos, que eu por um dia pudesse ser gata, e ela um dia pudesse ser homem. Ela não me nega nem me confirma, deixa-me em espera, como sempre me fizeram todas as grandes mulheres que conheci.
Mas em Olímpia também há uma mágoa profundamente humana, não poucas vezes a vejo a olhar com melancolia o céu, as árvores, os carros que passam e até as calçadas. Parece com seus olhos querer captar à fina força todas as imagens que ainda pode guardar desta coisa fugaz que é a vida, porque lembrar-nos desta coisa fugaz que é a vida também é lembrar-nos das coisas que deixamos escapar sôfregas entre os dedos, das coisas, que não soubemos captar para sempre na nossa memória. Em cada instante, há na sua posse uma saudade de uma outra coisa que não esta, a existência modulada pelas badaladas fatídicas da nossa condição perecível, de um tempo perdido na espuma das rosas onde por alienação juntamos a palma da mão na palma da mão de alguma coisa gémea. A sintonia é coisa rara e belíssima, eu e a Olímpia tentamos isso várias vezes, quando dormimos, quando lemos, quando falamos, mas é difícil porque nem ela consegue colmatar a minha solidão de para sempre ímpar, nem eu consigo me volver na matéria onírica que ela guarda na recordação. Mas tentamos, é certo, dizem que tentar é o início para qualquer relação amorosa que se preze e eu tenho por ela, embora não recíproca, uma imensa paixão e devoção.

Por vezes dá me para a estupidez de me perguntar se ela gostou de ter sido transformada em gata. Dizem-me, embora nunca tenha comprovado, que os gatos vivem menos tempo que os homens. Mas basta-me olhar para a sua beleza, a sua paz, a simetria das suas formas e verdade de todos os seus gestos que não seria preciso ser Fausto para selar tal pacto com o sangue. E quem nos dera a nós, os medricas que não partiram com Ulisses na barca para ir resgatar uma perdida princesa, afinal termos dado esse passo, não nos termos encerrado na cobardia das saias da nossa mundividência dando o salto para o abismo vertiginoso. Partindo, é certo, sem saber para onde, podendo morrer, é certo, sem um funeral onde uma amada chorasse, poderíamos regressar párias pelo nosso stress pós-traumático, poderíamos até regressar irreconhecíveis aos nossos parentes, mas para sempre seriamos orgulhosos do nosso perfil sobre o espelho. Como Olímpia o é.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

há uma mulher que me fita

E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis, imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

defesa da violência


Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora, havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais, é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria: imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico, não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me enoja.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

holy cancer

The soul started climbing the stairs of emancipation
Wheel spinning over the rooted and timeless routine
Way far from the haunted fields of meat
Finding suicide in the interpenetration of hope and lust

Let us enter the temple of nobody’s land
Where the rivers cry for their beloved mistress
And we, also abandoned children from love,
We decide to march through the last gate

With blinded eyes and grotesque impulses inside our hearts
We crawl like bastard snakes
In the end origin of all the punishment
For those who decided to taste poems with their tongues

Then I stepped into an avalanche
It almost killed my soul
I was drenched in the basements of my anger
Wondering who to kill after the horizon had been defeated

There were innocents wondering around
The forsaken blood of a broken star
And the peregrines kissing the floor
Wanted to rebuild it by worshipping their path to the sheltering sky

And still there was no answer to the voices inside our minds
For which normativity should we stand for
To which beauty should we bow
And to whom should we offer our discipline

Pure willingness to use our hands
For no purpose beside firing to the moon
The harvest tale that was widely shut
By the contemplation of the opened fruit

But the liquor couldn’t fulfil the anger
Neither the open space between ourselves
So the snow kept covering my body
Holy cancer, waited liberty, visceral freedom.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vítor

Ele levantou os olhos em direcção de Dália e disse: estou estéril. O primeiro intuito da mulher foi tocar-lhe o pénis e provar a verdade dessa confissão, mas cedo percebeu que Vítor não estava a falar da sua genitália. Tremia nas suas mãos um frenesim endiabrado, o seu olhar lançava pequenos fogachos de dor, de músculos convulsando espasmos e de boca dançando como um cocaínado pela face, Vítor reiterou: estou estéril. As suas pernas também tremeram, os seus braços caíram inertes sobre a cama, tentou levantar uma mão, depois a outra, mas nada, apenas o olhar sarcástico e acutilante da caneta fugindo como um cavalo selvagem pelo campo. Era malicioso esse olhar, tinha em si uma conjunção simétrica de desprezo, vingança e nojo, Vítor percebeu que jamais a caneta queria ter sido usada para o intuito dos seus versos, mas esperou dela outra consideração, outra solidariedade, porque na mais pura das verdades, nem Vítor queria ter sido usado para usar uma caneta.
Não raras vezes enquanto escrevia deparava-se com a obscenidade que estava a cometer, olhava assustado para si próprio no espelho: que monstro é este que estou criando? Que obsceno acto de cópula e reprodução tem a pornografia dos gestos que esboço sobre este papel? Os seus amigos invejavam-lhe a sua capacidade de catarse pela poesia, diziam que essa seria uma forma nobre de se livrar dos seus tormentos. Mas Vítor, sempre cativo, escravo e penitente, nunca compreendeu muito bem o que era isso da catarse, nem alguma vez percebeu de todo o que era isso da liberdade na escrita. Ele era escritor por obrigação, por imperativo, por mando, Vítor um mero e pobre seguidor, de rastos famigerados repelctos de sede, da voz que lhe segredava por dentro do corpo.
Que voz é essa, perguntava inúmeras vezes. Um dia tentou descortina-la, desembrulha-la, mostrar ao mundo como ela era, chamou Dália sua namorada e disse: Meu amor olha o que eu tenho dentro de mim! Mas mal ele se preparava para evocar o que lhe dizia a voz calou-se, ele esperou mais uns breves momentos mas nada, absolutamente nada, ficava expectante boquiaberto sem um único fonema lhe ser consentido. Depois, esperançoso, foi à gaveta da memória procurando por alguma gravação da voz. Nada. Mais uma vez nada. Todos os registos haviam sido destruídos, ele esgravatava e escarafunchava mas não encontrava nem vivalma, alguém tinha chegado antes dele. Fez uma promessa: da próxima vez que ouvir essa voz, vou escreve-la. E nesse exacto momento a voz reapareceu ditando-lhe um romance do início ao fim. Vítor ficou quatro dias sem comer e beber, dedicado inteiramente ao seu hercúleo trabalho, riu-se alto como Fausto, regozijou-se sarcástico como Bocage, até que a voz lhe disse: obrigado, era para isto que eu te queria, adeus. Desapareceu, Vítor percebeu como tinha sido enganado e que o seu intuito de desvendar essa estranha voz tinha sido em vão, na verdade, tinha apenas feito o que ela queria.
Continuou várias vezes súbdito da mesma, poderia estar na cama com a sua namorada, dando umas linhas de coca com os amigos, jogando xadrez com seu avô, que bastava a voz aparecer para ele largar tudo e agarrar-se ao seu caderno. Quando renegava às directrizes da sua proxeneta ela era intolerável, primeiro esmagava-lhe o ego com todas as revelações e humilhações possíveis e uma vez destruído o ego possuía-o enorme e interminável inquietação, fazia-se de tremores, suores, gemidos sorrateiros de dor. A cada momento, essa ânsia ia crescendo, começando pelos vómitos, pelos gritos e quando Vítor se dava conta, já os seus pulsos banhavam de sangue uma faca.
E a caneta, a caneta sabia disso tudo, não era justo o olhar que lhe retribuirá, Vítor estava tão encarcerado quanto ela. Nessa solitária prisão, perdeu anos de vida, os seus cabelos volveram-se brancos, os seus dentes foram se evanescendo, os seus olhos ganhando tonalidades avermelhadas, a sua barba crescendo floresta inóspita e muitos piolhos dançando por todo lado. Depois de completamente sugada a sua vida e jovialidade, sentiu-se subitamente abandonado. Gritou uma terceira vez: estou estéril. Dália assustou-se, cedo percebeu que ele estaria perto de mais uma das suas crises, foi buscar água e deu-lhe a beber na boca, Vítor não estava bem e desta vez não era como as outras, ela sabia-o. Primeiro foi-se a força nos braços, depois o corpo começou a tremer propulsionado pelas pernas, o coração acelerou num ritmo frenético. Dália percebeu que era provação da voz, porventura esta quereria soltar-se mas não conseguia devido a casmurrice do Vítor. Escreve Vítor, por favor, escreve, já sabes que tens de escrever quando é assim, disse-lhe, mas Vítor disse-lhe que não, não valia a pena, os seus braços não se mexiam. Virou os olhos para dentro e disse à voz, o que queres de mim? Não te chega tudo o que te dei? As obras que fecundei? Os momentos que martirizei? Mas a raiva não o levava a lado nenhum. A convulsão aumentava de tom, a agonia alastrava-se por todo o corpo e da sua boca já jorravam jactos de vómito por todo lado, então que gritou, fura-me, fura-me que ela quer sair. Dália pegou na faca mas era incapaz de furar o seu mais querido. FURA-ME CARALHO, FURA-ME JÁ. Dália tremia. FURA ME SUA PUTA NÂO PERCEBES QUE PRECISO QUE ME FURES CARALHO. Dália continuava hesitante. COMI A PUTA DA TUA IRMÃ NO NATAL, MENTI-TE SUA CABRA. E aí tomada por loucura momentânea, Dália começou a esburaca-lo com a sua faca. Na cara de Vítor nunca houvera tamanho alivio e felicidade, agradeceu a Deus ter-se lembrado daquela mentira e morreu em paz.
E nesse exacto momento, uma voz iluminou esta história no silêncio do meu corpo.