terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O meu vigesimo aniversario

Vou verificar as tabelas de esperança média de vida, infantil e ingénuo, crente no progresso científico. 70 e tal anos quase 80. Quiçá. Rio-me irónico de mim mesmo. Pareço daqueles putos estúpidos que vão ler aos manuais de biologia quais são os sinais da puberdade para ver se chegaram lá. Rio-me irónico, novamente, ainda mais quando penso que já o fiz.
O meu riso e interrompido pela faca, sofro um esticão frio e ácido, dói mais quando começa ou acaba o corte, não entendo porque. Findou mais um traço no meu pulso, o sangue como de costume esvai-se para os meus dedos e impregna-se em tudo que toco. E a minha marca sobre os objecto, olho de perto o traço há uma ligeira falha de quase um ano, não me lembro bem porque, lembro me talvez de ter sentido que dói mais quando começa, ou neste caso recomeça, ou acaba o corte. Ou. Ou não me interesso por nada disto sinceramente, penso como são ridículos os anarquistas, surrealistas e todos aqueles que desprezam a forca do hábito. Desinteresso-me profundamente por tudo isto, retiro os olhos dos traços( verticais, paralelos e de igual tamanho) feitos a giz(dezanove a giz vale quase um a sangue) por mim na parede e vejo que a beira ha um poster de uma mulher nua, loira, sem pelos púbicos e com seios de plástico, vejo a janela com grades pregar-lhe uma partida, e a sombra de uma delas escancarar-se entre os seus seios, para quem não percebe como se pode rir do nosso próprio infortúnio, há que saber ver como a nossa prisão também tem a sua piada, e como e importante saber nos rirmos irónicos da nossa vida, da nossa desgraça.

sábado, 21 de novembro de 2009

Ines

A Inês toldavam-lhe os cabelos castanhos, inseguros e puros como se lhe desenhavam os olhos, brilhantes e amendoados. Trazia em si uma capacidade impar de amar, o fervor dum beijo, e toda uma bagagem ético-moral onde o dar era o pilar. Em tudo se dava por algo mais, talvez espiritualidade, talvez razão de viver, talvez por inconformismo.
A Inês fora lhe dado uma certa beleza, nada exuberante, mas simples e comum. Inês era uma mulher simples, não teria os rodriguinhos de outros grandes vultos, mas, por ironia do destino, ao que ela aspirava era capaz de ser ainda mais radical ou revolucionário. Lera em tempos da mão de sua mãe uma passagem da bíblia onde Jesus proclamava que queria mudar todas as relações da actual sociedade, transformando-as em relações de amor. Suscitara-lhe grande inquietação, e Inês já não sabia se era mais cristã ou anarquista. Contudo, pela via das dúvidas, deixava o seu belo peito livre de crucificação alheia.
Inês lutara por conseguir ter relações cada vez mais genuínas, verdadeiras e imortais. Apaixonara-se. Atingira o que consideraria ser a máxima elevação a que um ser humano poderia aspirar. Decidiu lutar com unhas e dentes por aquilo em que acreditava, principalmente, por preservar o seu estado absoluto de pureza e entrega. Inês, sonhava em segredo, sonhava com tudo aquilo que as pessoas não acreditavam nem procuravam, sonhava com uma amizade transversal ao tempo, sonhava com respeito e sinceridade incondicionais, sonhava com afecto capaz de arredar os muros de gelo que nos separam, sonhava. Parecia lhe tão absurdo por vezes o mundo, tão frio, tão cheio de pessoas fingindo. Parecia lhe tão errado por vezes o mundo, tão pobre, tão cheio de pessoas solitárias.
Mas Inês nunca pensara que era um algum género de profetisa, pelo contrário era bastante humilde. Respeitava o mundo e a forma como as pessoas se relacionavam, raramente pregava algo ou se dedicava a conquistar alguém. Gostava de entrar de mansinho nas pessoas, de lhes fazer pequenas carícias e enche-las de mimos. Também assim se prestava a fazer à paixão da sua vida.
Um pouco desajeitado e apagado, ninguém compreendia o que ela via neste rapaz tão igual a tantos outros, sem carisma, sem fogo. Tiago era um rapaz pálido e frio, tendendo para ser ligeiramente evasivo. Sempre muito hesitante. Mas nele ela vira uma dor gigantesca nos olhos.
Quando Inês lhe beijou a testa, Tiago sentiu a sua dor partir, sentiu o fim do período de isolamento e tristeza e descrença. Nunca mais se viram, Tiago nunca se apercebeu muito bem do que tinha passado. Nunca tinha compreendido que apenas um gesto de amor puro e genuíno serviria para o soltar da perdição. E Inês, continuou pintando, escrevendo sobre ele, amando-o profundamente. Gozando as maravilhas de estar apaixonada.
Quando falei com ela, senti pena, afinal porque é que Inês dedicara o tempo todo da sua vida em prol de uma paixão que não era recíproca? Ela respondeu me que estar apaixonada era uma bênção, que sorria todas as manhãs quando acordava por pensar como Tiago estava livre e feliz. Nada mais lhe fazia feliz a ela, imaginá-lo sorrindo e desabrochando. Não mais ser que um copo de agua, disse me ela sorrindo.
Achei os seus textos um pouco desajeitados e adolescentes, mas adorei seus quadros. Uma vez pedi-lhe para me deixar vê-la pintar. Era tão bonito ver a delicadeza com que pegava no pincel para mais uma vez desenhá-lo. Sorria sempre, às vezes ria-se até. Tiago parecera tão bonito nos quadros dela que quase nem parecia Tiago. Fiz lhe duas perguntas finais, perguntei lhe se era realmente Tiago que pintava e se alguma vez Tiago estaria disposto a criar aquilo que Inês sonhava. Inês por momentos pareceu enevoada, mas depois sorriu-me.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Joaquim

Há uma certa poesia na forma sedenta e possessa como o mosquito se prepara para me picar. Vejo o seu habitual zumbido a oscilar ligeiramente de frequência, como se afinasse com algum diapasão desperto pela libertação da negra beleza das suas patas na minha pele, os seus olhos parecem mais esbugalhados e brilhantes, a sua pele por momentos reflecte uma luz que se atenua, enquanto se extenua, a sua sede de sangue.
Adoro sentir a forma como me atropelam as formigas quando passam por cima de mim, como algumas me mordem, olho para eles como o meu pai olhava para mim quando brincava com a mão dele, abraço as com a minha ajuda, reparo o que elas deixam ficar para trás e pego nele dando lhes o seu pão.
O meu pai não gostava dos meus gerúndios, achava os feios e abrasileirados. Eu adorava o meu pai, ele podia me bater mas nada achava mais bonito que ver no espelho a pele a ficar negra, tão negra como a pele duma formiga. Achava bonito, todos os processos biológicos associados a esse facto todos os tons que se espraiavam desde do castanho ao púrpura: passando pelo negro.
Adoro o negro, talvez o único motivo pelo qual sou patriótico, acho que o negro e a cor de Portugal. Que mais cor atribuir aos nossos trabalhadores mal pagos? Ou a quantidade de pessoas que morreram no mar por um monarca doido? Que cor mais atribuir, ao fado, a saudade, a Amália, Pessoa ou ao presente?
Identifico me com o negro desde criança, lembro-me ate da cor do vestido da minha tia Giguinhas, viúva muito nova, tinha sempre orvalho seco nos olhos, mas quando íamos visitar a campa das pessoas da família a lágrima molhava-se. Seria talvez dos espectáculos mais bonitos da minha vida, ver as lágrimas da minha tia a nascer frutos da convalescença pura e instintiva do seu corpo, ver a dor a pingar no chão como uma pancada suave dum xilofone, ver a dor, no seu estado mais puro e livre. Agora que todos se foram embora sento-me aqui, admiro a volatilidade da vida com o partir da lágrima da minha tia e o passar dos vermes saídos das campas. Beijo o chão ainda húmido e sinto um verme a tentar comer-me. Deixo-o. A minha pele começa a ficar pulverizada por doces pintas vermelhas da alergia que tenho aos vermes. E ao sangue.
Assim, fiquei duplamente surpreendido quando matei o meu pai. O seu sangue jorrava como uma ejaculação há muito esperada. Nunca julguei que o sangue fosse tão quente. A cada corte que lhe desferia no peito mais sangue jorrava esplendidamente parecendo ate, pelas minhas nódoas vermelhas nas pernas, que iria ficar baptizado para sempre por amor ao que era belo. Mas as nódoas passaram, e também aprendi como tudo o que era belo deveria ser moderado, como tinha de por vezes fechar as portas a dor, a mais pura beleza.
Não há nada mais bonito que a dor física ou animalidade. São dois sentimentos puros e irrefutáveis. A alegria e um êxtase, uma mentira que o demónio-espiritual tenta nos incutir. E a civilização e a sua consequente moral, outra. Quantas pessoas já viste alegres? E das que vistes todas estavam efectivamente alegres? E das que estavam efectivamente alegres estariam também alegres da mesma forma? Quantas pessoas já viste civilizadas? E das pessoas que viste civilizadas eram efectivamente civilizadas? E das que eram efectivamente civilizadas eram todas civilizadas da mesma forma?
Por isso, a todos esses acrescentos alucinogenicos eu nego guarida. A dor conheço, a dor todos conhecemos, como conhecemos o instinto: a nossa animalidade. Ninguém ousa negar que não tem dor nenhum homem jamais não sentiu a dor física no seu corpo, nem ninguém ousa negar que algum homem beijou uma mulher sem jamais ter querido a sua carne.
A poesia é o real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. E Quanto mais verdadeiro, mais poético.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Jacques

Nao, nao facas isso, disse lhe Pierre, pensa duas vezes Jacques, por favor.
O Sena parecia um prédio gigantesco, com varias janelas e cada uma delas mostrava a Jacques algo de diferente. O seu filho toxicodepente por nunca ter tido a atencao de seu pai. A sua mulher que o tinha deixado apos um flirt que Jacques tivera com uma mulher. O seu pai, monstro impiedoso que lhe batera todos os dias da sua infância. E sua mãe, judia, origem que Jacques sempre renegara com vergonha. Jacques era o mais banal suicida que se poderia encontrar, motivos comuns ou mesmo plausíveis pode se dizer com certa frieza cínica.
Não, não faças isso Jacques, por favor, disse lhe Pierre.
Pierre era franzino e parecia algo cómico no sua vestimenta de abade. Pertencera a uma família abastada, mas rejeitara a sua herança para se encontrar consigo e com Deus. Conhecera Jacques através das suas habituais actividades de apoio social, e em este sempre lhe intrigara como Deus lhe faltara tanto.
Jacques, ouve-me, vou te contar dois grandes segredos. O primeiro e que somos todos filhos de Deus, ate tu Jacques, por mais que a sociedade te ostracize e te condene, te trate como escumalha ou indiferença, por mais que te sintas o resíduo deste sistema, não o es. O segundo e que tudo e amor e poesia em devir, que todo o lixo da sociedade, da rua e fruto da sua criacao, quando Jesus e os seus apóstolos andavam, depararam-se com um cão, os apóstolos disseram: Cuidado, veja como rosne, como se baba, como e feroz; ao que Jesus respondeu: mas tem um pelo tão bonito. Eu e tu, vamos fazer de nos, rejeitados, e do lixo, despojado, a nossa vida, ganharemos o pão e o sustento reabilitando-o, e ao rebilitarmos o lixo, ao criarmos uma obra, estaremos perto de nos encontrar. Porque so nos encontraremos, quando salvarmos mais pessoas como tu, quando nos entregarmos um ao outro e aos outros.
Jacques sentiu se amado, abraçou Pierre e sentiu a paz redentora do Senhor.

domingo, 1 de novembro de 2009

Vasco

Gosto daquela frase do tolentino mendonca “ a noite abre os meus olhos”. Há quem ache estranho porque e que as vezes perante as grandes desilusões eu não fique triste mas contente por descobrir algo que não via. Doi me sobretudo o esqucimento. Aquelas pessoas de quem gostava profundamente mas que não cativei, e pelas quais as promessas que o tempo e a distancia nada apagariam eram infundadas. Aquelas que pessoas que proferiram gestos ou palavras que ensaiavam mais que algo conjuntural mas que não cativei o suficiente. Quantas são as pessoas ou coisas pelas quais nutro o que nunca nutriram por mim, ou quantas são essas ou mesmo outras pessoas ou coisas que nutrem por mim o que nunca nutri por elas, ou quantas são ainda essas pessoas ou coisas que já nutriram mas não nutrem, e sobretudo, quais deste universo de pessoas ou coisas ainda tem salvacao. Talvez seja lírico demasiado e acredite na pureza dum olhar ou dum beijo, e não como fruto de um clima ou situacao, as mulheres lindas que já conheci, as mulheres fantásticas que já conheci, os amigos mais comicos que ja conheci, ou as amigos mais interessantes que ja conheci… Sou eu que me fodo sempre porque fico a pensar, e alguns passam por cima, crescem, vêem, partem, e no meu altruísmo puro não gero dentro de mim inveja, ressentimento. Não me imponho as pessoas, entro de manso nelas, e quando não me querem vou-me, pensando mas não de orgulho ferido. Mas a vida talvez seja mesmo assim, encontros ou desencontros e o que magoa ainda mais, e quando sinto que tinha mais a dar mas a minha vontade de não me impor, mais uma vez insisto, faz me partir também, por altruísmo ensaiei primeiro, mas também possa ser por falta de auto estima ou complexos parvos. Podemos sempre refugiar-nos no nosso canto, chorar o mundo, dizer que estavavamos cheios de amor e pureza para dar e rosnar-lhe chorando, pedir lhe para partir. Ou podemos aceitar, adultos e maduros, o reflexo turvo do rio.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Aníbal

Fuma cigarros puto.
Fuma cigarros que a vida é curta e dura apenas o tempo de fumares um masso de tabaco.
Fuma cigarros, que aquela gaja que esta ali a passar tem um grande par de mamas, talvez o melhor par de mamas que já viste talvez o par de mamas com que sonhas todas as noites quando te masturbas e a tua namorada apenas aparece para dar a cara.... E não é teu.
Por isso não desistas de fumar um cigarro porque tu queres, e eu sei o bem, vejo a forma enjoada e hipnotizada como olhas para o meu cigarro, a forma como no meio da total escuridão nocturna a sua luz doente e boémia ainda brilha, doente. Fuma cigarros que a noite é curta e não espera, fuma cigarros como quem improvisa um suave dormir metáfora do caralho que te vai foder se não fumares cigarros.
Já te contei a história da minha avo, puto? A minha avo trabalhou a vida inteira das oito as dez para ganhar a merda dum salário que mal lhe dava para comer a ela e aos filhos por causa da merda dum regime fascito-capitalista, por isso, fuma cigarros enquanto nutres ódio pelo Paulo Portas e pela vida que ela levou sem fumar um único cigarro.
Fuma cigarros puto, fuma e fuma até tarde, amanhã tens aulas mas as aulas, nada mais são que uma escravatura sobre a tua vontade primaria de fumar cigarros e tudo o que é teu e primário defende com unhas e dentes como quem segura estremecendo de convicção o seu cigarro de suicídio.
Sim, suicida-te a fumar, suicida-te a médio ou a longo prazo, ou já hoje, consoante o tempo há que já fumas e da qualidade dos pulmões que a tua mãe te deu.
Fuma cigarros que me dói a cabeça, que todos os dias uma agonia segura os meus dias mal enforcados
Fuma cigarros que me dói a virilha e não é de foder nem de fumar
Fuma cigarros, puto, que quando o Jimmy Hendrix morreu afogado no seu vomitado, sorria.

domingo, 4 de outubro de 2009

Carlos

A casa era cinzenta e fria. Nas paredes, grandes nódoas de sujidade lembravam passagens de “húmus” de Raul Brandão. Parecia que ano após ano, as nódoas cresciam e perdiam o seu carácter um tanto ou quanto circular e ganhavam formas excêntricas mais parecendo poços de sangue. Onde em tempos alguém vira a obra de um notável arquitecto, agora via-se o bastião do capitalismo com as suas vigiadoras janelas negras impermeáveis a vista.
Em busca de falsas meriotocracias concederam-me o visto para entrar. Quando entrei vi todos os símbolos da humanidade pendurados nos candelabros. Vi Jesuses, Budas, Marxes, Proudhons, todos eles de olhos revirados, com moscas a comerem, numa lentidão eterna, seus corpos putrefactos. Havia ate quem lambesse do chão o sangue que ainda escorria de alguns corpos ainda frescos. Havia ate quem descansava no chão olhando para um longo orgasmo misturado com sangue derramado.
Hora a hora, surgia uma súbita multidão, trocavam-se os treinos, quem limpava as espingardas agora ia atirar ao alvo, quem atirava ao alvo ia a catequese, quem ouvia a catequese ia a torre de controlo, quem saia da torre de controlo ia limpar as espingardas. E muitas outras actividades engendravam-se naquele átrio.
Sabia-se que não era esta a casa forte do Exercito. Que esta era apenas um filial, mas que daqui saiam muitos para a Capital para grande euforia e orgulho dos nossos. Ministros, dizia-se nos corredores, ou gestores, na melhor das hipóteses. Talvez, ate a Deloitte, insistia-se, mas mal não ficaremos, isso esta garantido.
Uma vez, no armazém deparei me com a bíblia profanada, toda cuspida com frases a vermelho gritando as mais diversas injurias, e n’O Capital constava todos os ataques contra quem não consentia o direito a propriedade privada como mérito. Todas as anteriores figuras eram consideradas contra-revolucionarias e tinham sido retiradas, nos frescos descobriam-se corpos sem caras, nas paredes, onde outrora havia estátuas de homenagem a grandes figuras da Humanidade, um vazio. Eram inúteis, não precisavamos mais deles.
Quem passeava pelos corredores via luzes acesas debaixo das portas. Ninguém sabia ou imaginava que indivíduos eram aqueles que noite após noite trabalhavam no seu gabinete na defesa de nos todos. Mas recebiam o melhor ordenado possível, bem como as honras de Estado por o garantirem na vanguarda do pensamento moderno.
Os alunos eram analfabetos. Pouco sabiam da Historia e dai nenhuma elação que os conduzisse a exigir direitos ou prosseguir algo. Pouco sabiam, agora pensando, de filosofia por isso nenhuma elação tirariam mesmo que quisessem. O sistema concedera-lhes um voto, mas tirando os que consideravam inconsequente para a sua vida futura onde questao era comprar ou nao o bm, os que restavam não se preocupavam em dar-lhe profundidade. Enquanto houver um bm há um feliz, e outros quatro felizes com a possibilidade de o ter.
Vi expostos, esses sim com adorno e requinte, tratados nas paredes. Os tratados que sentenciaram os meus antepassados a fome, agora revistos e actualizados. E nas aulas, esses sim com fulgor e veemência, defendidos: os pensamentos, onde pessoas são enumerados como números ou como variáveis plenamente variáveis. E nos exames, os alunos sentenciarem-se, admitirem a lei da oferta e da procura bem como outras tantas ofensas a sua integridade e dignidade, e dessa mesma forma admitindo-se como possível “excesso de oferta de trabalho” ou “desemprego necessario”. Em cada ponto da casa, via-se alunos escreverem, fazendo exercidos preparados para os entreter fora das grandes questões, assinando cegos o contracto do seu suicídio. E o que fazer das pessoas que se sentenciam? Quem serás tu ou eu para te julgares a cima deles, e com a capacidade de julgares o que deveriam eles procurar ou fazer da sua vida? Queres fazer a revolução por eles mas contra eles? És muito estúpido Carlos.

domingo, 8 de março de 2009

Miguel

Miguel tinha umas maos finas como o brum, arranhadas como a terra. Doces como a terra, duras como o brum. Redutivelmente, o Miguel ,intrinsecamente, era a terra, era a silvestre hera que trepava todos os dias com o suor pela parede onde aguardava o sol espreitando, e uma vez finda ilusao, uma vez a dois palmos de o agarrar ele fugir, o Miguel dormia.
O Miguel era as suas maos, finas, finas o suficiente para amestrar-se em qualquer arte, o suficiente, para um comunista se encher o peito e querer convencer o Miguel de que se tivesse nascido em outro lado hoje seria um grande instrumentista, nao terra, nao terra, nao brum, mas Miguel, porque Miguel em devir era um gomo de andorinha(destinado a morrer por nao migrar).
Enganava-se o comunista porque Miguel era mesmo as suas maos, poderia nao fazer da terra a sua vida, eventualmente, mas isso em nada mudaria as suas maos.
Todos os dias, acordava, e a suas maos vestia todos os acrescentos necessarios a sua livre essencia, toda a instrumentalizacao canonica por parte da sobrevivencia: mas uma vez nuas de proposito ou necessidades, nuas, virginalmente, cicatrizadamente, eternamente, obsoletamente, nuas elas ainda eram petalas do seu amor por Ana. Havia algo de acestralmente primordial no perfeito encaixe cara-mao dos dois, poesia ergonomica de concavidade descrita, de posse eleita, da pele agora um todo sem ausencia, expurgada, dedos beijando lhe a pele dando-lhe a mudez simples dum coracao. A mao do Miguel, suja, gasta, humilhada, servil, ostracizada, renegada ate pelo proprio, libertava em Ana todo o seu perfume natural, as sardas nas boxeixas antes brancas, que brilhavam com os sinais a luz da lua. E nessa constelacao unificada, nessa comunhao conseguida entre o corpo de Ana e o Cosmo, numa reluzente: dardejante sintonia, numa raiante: libertaria harmonia , nada mais era que a outrora solidao agora sorriso saindo do vazio pelos poros.
Ana um dia partiu. Miguel quiz lhe escrever uma carta mesmo nao sabendo escrever. Determinado, esqueceu o campo e dedicou o seu tempo todo a tentar escrever lhe uma carta apenas em jeito de bencao. Morreu a fome. A Miguel so lhe valiam as maos.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Joao

O joao. O joao gostava de fumar. Tinha 14 pois, era cedo talvez, mas o Joao gostava de fumar. Havia algo de magico no cigarro que fumava a Noite. Sozinho, com o fumo subindo pelas escadas picotadas, havia alguma especie de comunicacao transcendental com um instinto primordial. O de fumar a Noite. No silencio da Noite. O unico que o deixa ouvir o puxar do cigarro, e o adormecer dos pulmoes com o cair do nevoeiro. O unico que permite ouvir o corpo virgem mais uma vez entregar se, e o fumo amante ou leito aconchegar o Joao.
O Joao estava sentado mas nao estava sentado. Os olhos repousavam sobre as estrelas que eram campos. O peito sentia o vento que era brisa. Sentado, mais uma vez no seu terraco, Joao fazia a unica coisa que o distinguia de alguns, nunca estava. Possuia uma impar e incrivel capacidade de imaginacao, mas nada que tenha que ver com o sentido usual de imaginacao, a imaginacao de Joao nao era nitida, o Joao nao se imaginava em campos, nem tao pouco era nitida auditivamente, o joao tinha pessima memoria auditivia e nunca reconhecia a voz de ninguem ao telefone. O joao possuia pois uma diferente sensibilidade na planta dos pes, que o fazia adorar andar descalco sobre o asfalto, e uma sensibilidade conceptual anarquica.
Os mundos de Joao nao tinha personagens, nem tao pouco tinham um curso, as personagens mudavam de forma, intelectual e fisica, e os eventos mudavam de fim, com ou sem. Com que o Joao gostava de brincar era com o mundo e a sua organizacao, imaginava homens a venerar um deus crucificado antes num rectangulo, e como toda a arquitectura a sua volta se mudaria, e depois, imaginava como seria se o passado mudasse a cada cinco minutos que passasse, como seria se passasse cinco minutos e voltassemos a estaca zero, e o deus agora fosse crucificado numa roda, e agora o eterno era feito de experiencias aleatorias, de esbocos de cinco minutos. Toda gente achava que as brincadeiras de Joao nao faziam sentido, mas ele inventava novas sempre, havia sempre outra grande lei do universo que surgia que fazia mudar radicalmente tudo o que se tinha como dado.
Tambem por isso ele gostava do cigarro, o cigarro propulsionava o para um outro universo, onde as suas experiencias sensiveis mudavam, dada a ligeira tontura que ele lhe provocava. O Joao gostava disso, e para ele essa era a clara evidencia que ele exisitia. Nao o cigarro, mas ele proprio.
O seu pai era cego. E rapidamente desde pequeno descobriu que as coisas nao precisam de fazer sentido. Nem tao pouco tem de ser assim. Era o unico miudo da creche que tinha um pai cego, e isso bastou lhe para entender a diferenca. Isso mudou radicalmente a sua forma de ver o mundo, o facto de ter uma educacao tao saudavel e digna como qualquer outra crianca, fez lo ver como as concepcoes e os preconceitos da sociedade era estupidos e nao faziam sentido nenhum. Como era estupido dizer se que os gregos sao ridiculos por acreditarem em mulheres que nascem da cabeca dos pais, e o Joao chegou a esta conclusao muito cedo:gostava de gozar com os colegas catolicos dizendo lhes que acreditava piamente nos deuses egipcios.
O Joao nao era catolico, nem tao pouco tinha mae, nao era um rapaz por isso amargado, triste. Nao, o Joao sabia que a sua afirmacao como pessoa e nao como uma mais invencao mirabulante sua, vinha exacatamente do tabaco.
O Joao nao existia para os demais, porque o Joao esquecia se que realemente era uma invencao mirabulante. Para os outros, o Joao era quase uma manifestacao do sexto sentido, porque havia um lugar na sala que nunca podia ser ocupado, porque havia uma resposta que era dada na aula sem se saber de onde, porque alguem estava na fila da cantina antes de nos. Pois era, o Joao nao era captado pelos radares dos outros, era raro darem por ele, porque ele tambem nunca estava. Ninguem sabia quem ele era, apesar de uma colega dele se lembrar de que no jantar de finalistas um rapaz muito simpatico sorriu lhe duma forma encantadora.
O Joao nao era giro nem feio, nem jogava bem nem mal futebol, por isso, as suas colegas, e os seus colegas nem reparavam. E para o Joao isso era perfeito, assim podia olhar para eles, e servir se deles para as mais fantasticas fantasias. Todas as formas de relacoes sociais eram alteradas por ele. Imaginava se os simbolos e papeis sociais se invertessem. E era tao giro imaginar os rapazes pacoviamente puritanos e as raparigas prevertidamente sexistas.
Mas o Joao nao gostava de ficcao cientifica, para o Joao, a ciencia exacta nao fazia sentido dada a sua unica aplicabilidade a este universo, o Joao gostava era de poesia e arte. Quando sairam as notas dos testes de apetencias vocacionais, o Joao teve pessimas notas a tudo, preocupava se apenas em tirar a positiva para depois poder aproveitar o silencio da sala para imaginar.
A imaginacao nao da emprego Joao. Se nao gostas das ciencias, e es burro comocaralho vai antes pa humanidades, pode ser que consigas passar se nao tiveres matematica.
As humanidades nao da emprego Joao, eu ate acho que tu podes fazer matematica, vai para economia, la arranjas emprego.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Antônio


O Antônio até queria ser professor de Inglês, dizia ter jeito para as línguas, gostava de falar com outros povos, e até nutria alguma auto-estima por saber falar tão bem Inglês. Mas fora expulso da aula de inglês. A professora, quarentona no peso e na insegurança, tinha bastantes dificuldades em manter a disciplina na sala de aula, então, qual anarco-terrorista, apostava em repentinas explusoes de autoridade e atentados aparentemente descoordenados. Aguardava, assim, conseguir manter o magno respeito na sala de aula expulsando à queima-roupa.
O Antônio já sabia que as aulas de inglês eram uma seca por isso mesmo, não gostava daquela forma desiludida que uma anarco-terrorista vê o mundo, sempre a queixar-se, sempre ameaçar, e até recorda de bom agrado as maldades que lhe faziam uma vez que, para além de narcista, o Antônio era orgulhoso e não gostava de se ver a ser tratado como um jovem delinquente.
Mas fora expulso da aula de inglês. Nesse dia, o sol raiava, a relva verdejava, e os mais novos jogavam futebol no recreio: resolveu dar um passeio. Uma vigilante, nova no serviço, viu-o a passar. Para malgrado do António era bastante mais alto que os restantes. E estava um dia tão bonito...Chega cá, que andas a fazer? Passeio. Passeias? Sim, passeio, não vê? Mas, estás no intervalo? Que eu saiba estar no intervalo não é condição necessária para passear…
Chegou isto para ela pegar nele pelo pescoço e levá-lo à madre contínua superior, suprema autoridade em assuntos que tocam no que é que um aluno deve estar a fazer a uma determinada hora. Mas que porra, logo no primeiro dia de trabalho e tenho logo de lidar com um miúdo que se balda as aulas?
Chegado à madre contínua superior, a sentença foi deliberada, António não estava a faltar as aulas, tinha sido pois expulso, e desta vez seria melhor castigado, não é que o estúpido em vez de ter ficado feito cãozinho abandonado e arrependido à porta da sala de aula a choramingar para entrar, tinha resolvido ir dar um passeio? Quem é que este gajo julga que é? Deve achar que as coisas se fazem assim, tipo está um dia bonito, a relva esta verde, há miúdos a jogar à bola, por isso se não tivermos mais nada que fazer e quisermos, ora siga lá dar um passeio.
Dizia o psicólogo da escola que António tinha um grave problema de aceitação da autoridade, e uma grave deformação na concepção daquilo que é a importância da norma e da autoridade públicas para garantir a coesão dos corpos sociais. Possuía ainda, uma conceptualização errónea em relação à circunscrição do que podemos decidir pela própria cabeça. Alias, porque o António era um miúdo de 13 anos!
Um dia, a mãe de António esqueceu-se de o ir buscar à escola para almoçar. O António, já habituado a este tipo de situações resolveu fazer aquilo que era considerado um atentado à ordem pública, pensar pela própria cabeça. O gajo tem 13 anos! O gajo não pode decidir e dar um passeio só porque faz sol, merda!. António partiu então na sua demanda existencial, rua fora. Faltavam quinze minutos para começar as aulas, e já tinha estado quase duas horas à espera da mãe. Dizem que é impossível incutir espiritualidade em estomagos vazios, António concordava, tinha considerações muito pragmaticas da moral, achava a moral uma enorme fantuchada, e que era bem mais importante pensar pela própria cabeça, porque já passavam duas horas, mais quatro de aulas, mais meia hora de viagem para escola e antes disso... ah pois não tomou pequeno almoço! Bem isso faz mais de dez horas sem comer. Mas António não sentia dor no estomago, estava plenamente concentrado no assalto à mercearia. A merda do puto! Só se ouve falar na merda desse puto! Pa mas ou o expulsamos daqui para fora ou damos-lhe umas sovas para o meter na ordem se em casa não o metem!
O assalto correu mal, apanhado em flagrante, António saiu da loja a correr e a chorar. Sentiu o peso na consciencia: como Antônio odiava a sua consciencia, o seu coração, para António o seu coração era o elo mais fraco do seu corpo, era a única coisa que o poderia fazer falhar. Para António ter coração é ser se suscecptível de hesitar.
Chegou atrasado às aulas, e não o deixaram entrar na sala. Mais uma aula perdida sem nada que fazer. António recomeçou a chorar. Dizem que as pessoas orgulhosas, narcisistas, egocêntricas não choram facilmente. Mas quando choram, engolem isso tudo, engolem o orgulho, o snobismo, a pompuosidade, engolem tudo, e choram. Ou talvez não. Ou talvez os orgulhosos só chorem quando são crianças e depois com o tempo envolvem-se tanto com o seu orgulho como com o seu desprezo por outrem que deixam de chorar.
A vigilante passou por ele quando ele chorava. Levou-o para uma sala. Fez-lhe uma festa na cabeça. Antônio confessou-lhe que não tinha almoçado: ela ofereceu-lhe um queque vindo do seu pobre salário. António sentiu claramente dentro de si que estava perante uma manifestação de Deus. Raiou um trovão, um laivo de humanismo, perante uma realidade cínica e pragmática. Como o António é ridículo. Deus, António?
Escusado será dizer que uma vez no cumprimento do seu serviço a vigilante foi obrigada a prejudicar António, denuncia-lo por uma malandrice que fez, nem interessa qual, mas custou-lhe, sentia ternura por aquele pobre coitado, que afinal não era mais que um miúdo de 13 anos. António era muito mais que um miúdo de 13 anos, António tinha dentro de si tudo o que mais demoníaco podia ter uma pessoa que tem o pragmatismo tem na ponta da espingarda, e tudo aquilo de mais redentor que um pobre miúdo abandonado pode ter nos seus actos. Para António a situação era clara, a vigilante era uma opressora, estava contra ele, se ele cedesse ao seu laivo de agradecimento pelo queque mais tarde ou mais cedo iria pagar por isso, era altura de agir, de contra-intimidar, de dar a cara, lutar. António à saída da escola partiu o retrovisor da vigilante. Três vezes.
Ok, mas Deus António?