terça-feira, 30 de junho de 2015

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a noite transbordou as pedras obscuras
o miasma agora é caro para os solitários
por mais que ele chie à passagem dos comboios
por mais que eles espalhem clarões sobre objetos inimagináveis
para quem aprendeu a pulsação pelos livros

há quem deixe escorrer pelas mãos
segredos nunca confessados sobre a falta do frio invernoso
porque a miopia das cicatrizes obsta à nitidez necessária
para coser de novo o significado das membranas perdidas

as paredes dos prédios tremem de uma ânsia doida
de quem está enraizado há décadas na mesma circunscrição
murmuram preces na catedral dos nossos sonhos
para que as madrugadas adquiram finalmente uma propriedade salvífica

o vento engendra a sua composição de jornais rasgados na rua
sem contudo enunciar nenhuma narrativa sanatória
por mais que esbarrem sobre os noctívagos desterrados
quando andam à procura da promessa de carne
dos venenos que antes se avolumavam nos cantis

os mamilos eriçam-se mas por defesa
porque já ninguém quer os calafrios do inesperado
o turbilhão da incógnita a rejubilar nos signos
um voo rasante à descoberta dos destruidores dos arquétipos
o culto paradoxal da iconoclastia

luz já só queremos luz
mas as íris desapareceram dos dedos
e os trocos que foram colhidos por lavoura ordinária
já não pagam boleias para o descanso mortífero das casas

ficamos perdidos à procura das tomadas com a língua
pois é certo que em nada fomos preparados para esta miséria
para tanta coisa tomar pela mão o nosso interior
pois já nem reconhecemos a mão que vemos a esfaquear
a promessa de calmia encarnada no corpo amado

imitamos o bolor a alastrar-se na parede
como a sombra imita os gestos sobre o pano
assim escrevemos cartas públicas a reclamar brancura
e o silêncio  transforma-se no melhor ópio
para quem já só quer crepitar ao observar a metamorfose
do oriente circense sobre os náufragos
cantados por um poema épico sem qualidade
à imagem do caos a escorrer pelas bordas dos contentores

a nódoa é agora a única metafísica crível

os nossos olhos são magros em secura
já nada nos faz verter lágrimas
tal já é a indiferença perante o nosso corpo
por já termos obrigado ao suicídio até ao cartomantes benévolos
que pagamos com os dentes das nossas presas inocentes

somos um rio que nunca arrebentou as veias
mas a cidade já toma por identitária o nosso cheiro
por lhe lembrarmos os seus becos de juventude
e promessas difusas de particularidade sobre a urina da divisão do trabalho

mas tudo nos invade a ponto dos peixes ficarem andrógenos
de os canibais se aborrecerem de tédio
pois a revolta é em tudo harmónica
as vozes perderem o chão erigido pelo bordão
por isso ficamos em queda livre sem ter uma única corda irrepetível
no meio da proliferação obtusa de um mesmo
tão podre e vazio por dentro
que a reprodução massificada triunfa sobre o fogo irrepetível

assim as cinzas serão indiscerníveis
por mais que a poesia prometa obituários
ou qualquer tipo de outra ordenação cuidadosa
e o profeta terá razão por uma via ironicamente corrosiva
quando anunciou o fim da norma e de toda a propriedade

o nosso enjoo é a prova que se tudo tremer será insuportável