domingo, 8 de março de 2009

Miguel

Miguel tinha umas maos finas como o brum, arranhadas como a terra. Doces como a terra, duras como o brum. Redutivelmente, o Miguel ,intrinsecamente, era a terra, era a silvestre hera que trepava todos os dias com o suor pela parede onde aguardava o sol espreitando, e uma vez finda ilusao, uma vez a dois palmos de o agarrar ele fugir, o Miguel dormia.
O Miguel era as suas maos, finas, finas o suficiente para amestrar-se em qualquer arte, o suficiente, para um comunista se encher o peito e querer convencer o Miguel de que se tivesse nascido em outro lado hoje seria um grande instrumentista, nao terra, nao terra, nao brum, mas Miguel, porque Miguel em devir era um gomo de andorinha(destinado a morrer por nao migrar).
Enganava-se o comunista porque Miguel era mesmo as suas maos, poderia nao fazer da terra a sua vida, eventualmente, mas isso em nada mudaria as suas maos.
Todos os dias, acordava, e a suas maos vestia todos os acrescentos necessarios a sua livre essencia, toda a instrumentalizacao canonica por parte da sobrevivencia: mas uma vez nuas de proposito ou necessidades, nuas, virginalmente, cicatrizadamente, eternamente, obsoletamente, nuas elas ainda eram petalas do seu amor por Ana. Havia algo de acestralmente primordial no perfeito encaixe cara-mao dos dois, poesia ergonomica de concavidade descrita, de posse eleita, da pele agora um todo sem ausencia, expurgada, dedos beijando lhe a pele dando-lhe a mudez simples dum coracao. A mao do Miguel, suja, gasta, humilhada, servil, ostracizada, renegada ate pelo proprio, libertava em Ana todo o seu perfume natural, as sardas nas boxeixas antes brancas, que brilhavam com os sinais a luz da lua. E nessa constelacao unificada, nessa comunhao conseguida entre o corpo de Ana e o Cosmo, numa reluzente: dardejante sintonia, numa raiante: libertaria harmonia , nada mais era que a outrora solidao agora sorriso saindo do vazio pelos poros.
Ana um dia partiu. Miguel quiz lhe escrever uma carta mesmo nao sabendo escrever. Determinado, esqueceu o campo e dedicou o seu tempo todo a tentar escrever lhe uma carta apenas em jeito de bencao. Morreu a fome. A Miguel so lhe valiam as maos.