quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

defesa da violência


Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora, havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais, é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria: imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico, não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me enoja.


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