Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta
indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente
ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto
ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora,
havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição
que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas
dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como
garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a
enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso
sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde
com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem
decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem
própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta
civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir
aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do
Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados
dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a
vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem
explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do
homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou
de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor
das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão
pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam
a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa
de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma
mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a
violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que
estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de
quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência
do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a
agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para
poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua
própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de
defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica
do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais,
é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento
social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma
vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais
perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um
gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado
tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria:
imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas
gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com
todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado
com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá
então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu
pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da
norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da
infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em
tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo
seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema
estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me
a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico,
não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante
outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em
que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização
cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da
eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio
contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de
um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós
secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências
intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a
hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um
preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é
sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências
intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa
por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à
compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela
normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de
Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições
podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade
e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam
obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos
que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais
espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana
fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me
enoja.
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