sábado, 15 de outubro de 2011

Maria

Morre apunhalada como César a minha Pátria nas minhas mãos. Esfaqueada por seus filhos, sangrando entre o desgosto dessa traição e o medo da morte. Abraço-me a ela, choro fervorosamente com ela, enquanto o seu sangue me unta e se funde nas minhas lágrimas. Neste um rio só de sangue e lágrimas navegam naus transportando para a imigração tudo o que sonhámos os dois. Todas as promessas, todas as ideias que cerramos em divisas com que cunhamos o nosso corpo. Todas as aspirações, todos os sonhos que diletantes especulámos em noites frias ao som das ondas. Houve uma noite inclusive, que tivemos a nítida sensação de ver embater contra a costa uma onda vinda directamente de uma Nova Índia e sentimos sobre a lava que caíra no nosso corpo um espírito cunhando o seu nome com uma faca na nossa carne. Sonhámos um dia correr nus, mostrar ao mundo aquilo que somos, as divisas que somos. Existir é um manifesto, é um grito de ipiranga de um conjunto de mandatos interiores, quem não os tem não existe. Quem não os tem são os ‘homens-consensuais’, os ‘zés-ninguém’ de William Reich, os homens a quem não lhes conhece uma ideia, uma direcção a não ser a ganância do poder. Andam por aí, circulam como vermes por entre as frinchas do chão, por entre as paredes dos edifícios. Pertencem todos a um exército direccionado por alguma figura obscura que na sombra os dirige atirando-lhes migalhas. Em terra de cegos, quem tem olho é rei. Ela ri-se, ri-se da figura ridícula que eles fazem, todo desespero por que lutam por meras migalhas. Mas eles sabem que ela não gosta que tenham ideias e que pensem, por isso trocam palmadas nas costas um do outro e dizem ‘tu serás o próximo a subir, tu foste muito consensual e moderado’, num gesto de camaradagem que logo dissolvem quando se vem ultrapassados acusando o outro de ser radical, controverso, extremista. A Pátria que os adoptou, que os educou, que lhes deu a língua e por conseguinte a civilização, que julgou neles ver o seu sustentáculo e por conseguinte as suas armas, hoje viu-se apunhalada, apunhalada por todos por isso por ninguém, caída e desamparada, agonizada nas minhas mãos.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sílvio

Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, agitam-se e amam-se em espiral, mas numa espiral íntima, próxima, quase que se raspam, que se apagam, quase que avançam um, sobre outro, invadindo em tangente o espaço próximo do outro, e, ao invadir, rouba certa parte da outro, rouba certa parte da cor do outro, assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se, perdendo vertiginosamente a sua cor inicial, anteriormente antagónica, mas encontrando uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm. Quando as duas cabeças ovais embateram uma na outra, houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças, embatem uns contra os outros, esbatem uns contra os outros, assemelham-se a glóbulos vermelhos por veias, assemelham-se a um organismo a ganhar vida. Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos, uma seiva transparente me invade a superfície do corpo, finalmente consigo abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços, consigo ver claramente os contornos da rua que o vi caminhar e que antes me eram completamente invisíveis. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma indiferença estúpida perante o jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão. Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheio de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Neuza

Se tantas mulheres feias reproduzem e dão outras mulheres também elas feias mas ainda com capacidade de reproduziram, porque é que Deus se deu ao capricho de ir roubar ao mais negro óleo do crepúsculo para te picar como quem desenha em tinta-da-china o contorno dos teus olhos, fazendo uma cadência cada vez mais densa e escura à medida que se aproxima do mar fino de uma bruma de marfim de que são feitos. Passaria sentado sobre essa mesma margem, baloiçando os meus pés nessa paz de leite, tempos sem fim anotando todas as histórias que habitam na ilha em frente de mim. Consigo ver essa gueixa frígida que se deixa possuir por um homem corpulento, a forma como o sangue escorre pelos seus lábios vaginais frio e ácido, a transformar-se num canto que expele com o fumo do seu tabaco quando tenta tirar do seu corpo o cheiro imundo da besta que saíra deixando a nota boiando sobre esse rio feito canto feito história. Vejo simplesmente o olhar desafiante com que um heroinómano enfrenta como um toureiro a morte, o seu jeito provocador enquanto se deixa invadir pela morte saboreando cada pequeno resíduo de uma tampa de um iogurte como se risse na cara da morte, lhe mijasse em cima num mijo negro de prazer orgástico da droga. Ouço a história de todas as tuas pequenas bonecas de menina, a história de como cada uma te foi levada para parte incerta num terreno mítico vulgarizado por memória. Contas-me como cada essa pequena boneca são parte integrante do que és hoje, como tens os braços de uma, os ombros de outra, como te construíste enquanto mulher sem nunca perder a tua feminidade e a tua esperança com que lhes cantavas. Contas-me também como encontraste os homens vulgares, cinzentos, esterilizados emocionalmente por uma sociedade que os ensina a serem como bestas para copular por imperativo fisiológico. O amor, perguntas-me, onde está o sentimento? Será a revolução sexual a reacção sexual? Será a banalização do sexo o seu maior retrocesso? Assim descubro o valor do íntimo, nesse meu sonho intimo que descobri a escrever meia página sobre os teus olhos.
Assim brilha uma névoa no teu corpo, os raios de sol esbatem sobre teu corpo dando lhe os laranjas-fogo de um por do sol espelhado sobre o mar. Soltam pequenos tentáculos, rios ainda mais finos de luz provenientes do lugar onde se esbate a luz, a luz, no teu corpo, é como um animal vivo, um ser pernicioso que se expande enquanto sussurra cânticos, ouço o ‘Im Anfange schuf Gott Himmel und Erde’ exactamente como Haydn ouviu na sua cabeça quando pensava na sua obra. Sinto o amor impossível de Camões por sua cativa ou a mórbida frase de Cesariny ‘em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro’. Em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro, sigo pelo sinuoso caminho pedereste, absorvo-me cada vez mais em todo o seu detalhe e sinto que te perco, sinto que mais não te vejo, que perdi o caminho ao esmorecer-me bacoco por um mero passarinho caído do ninho. Como não me poderia perder por todo o mais ínfimo recanto também? Solto a resolução, tiro o binóculo, vejo te toda por inteiro de novo. Miro-te com o medo de quem olha Cleópatra por isso fujo. Mergulho de novo nesses caminhos sinuosos no meio dessa floresta de trigo, procuro-te, procuro as tuas histórias, procuro histórias, procuro pessoas, procuro personagens, procuro paisagens e paisagens mas só vejo trigo e trigo e trigo. È verdade que é um espanto ver a luz, mais uma vez, a ser vento, a curvar toda a ceara de uma vez e que é um delírio correr campos e campos sem fim apenas com a mão estendida passando a mão hirta pelo trigo. Assim descobri o que era íntimo, o integrante físico do íntimo, o espaço vital do teu íntimo quando julguei artista narciso sentir-me tocando a tua íris no papel.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tiago

A noite estala os dedos nas gotas de chuva que frita nas minhas janelas. Estala-os mais do que quem marca o compasso, estala os dedos como quem marca o tempo, como quem se fantasia de ampulheta. A ampulheta cortada a metade é um copo. É um copo a encher gota a gota, estalo a estalo, como uma mão que sobe fria entre as minhas saias palmo a palmo. A noite lambe os beiços, olhos hipnotizados como um pedófilo esfregaria as mãos se fosse uma formiga. Languidamente. Intensamente passa as mãos por entre as minhas cuecas brancas para sentir meus lábios, secos, rijos. Olho-a com o terror com que uma criança olha um pedófilo. Ela pega-me na mão e pousa-se sobre a sua barriga, sorri maternalmente ao ver me sentir o murro-grito do embrião. A besta. O anjo negro.
Encosto a minha cabeça no muro das lamentações, encosto-me as suas pedras, roço a minha cabeça nelas, beijo-as apaixonadamente, procuro inteirar-me delas quando levanto os olhos e vejo que estivera-me deliciando sobre o abdómen esculpido da besta. Acordo desse semi-sonho, dessa matrioska. Estou de frente para a noite que ainda me fita estudiosamente.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Inês- II

Seria talvez um sorriso de mona lisa ou talvez seria um sorriso redondamente interpretável. Enquanto conjurava o texto precedente na minha cabeça julguei ser exactamente esse o momento crítico que pretendia retratar. Se o texto pretendia ser um texto sobre o amor então porque não colocar a questão? Mas colocar a questão de forma mascarada e não assumida. Se a literatura é ou pretende ser um espaço de reflexão e construção interior e assumindo o autor envergonhadamente que pretende escrever literatura, então nada melhor que construir um texto quase que interactivo onde é o próprio leitor a definir o sorriso de Inês. Não seria também essa a intenção do pintor quando desenhou o supracitado sorriso? Fazer do quadro um potencializador de respostas interiores pelo simples artífice de servir de espelho? E, volto a frisar, para servir de espelho como se o leitor tivesse, e a meu ver tem mesmo, a capacidade de se rever, de se projectar no quadro, como se o quadro fosse uma variável dependente dele e, ainda mais, como se inconscientemente o fizesse, como se inconscientemente respondesse a uma pergunta, como se essa resposta que elabora se tornasse também ela verdadeira, matéria de facto interior, a tal ponto que ele sai reforçado, a tal ponto que a sua construção interior enquanto pessoa saia reforçada após ver-se corroborada de novo. Onde se leu construção interior poderia se ler mundividência, crença, estado de alma, experiência. Tal como toda esta resposta poderia ser a inversa se o texto ou o quadro tivesse a capacidade de perturbar o leitor ou o visionador, mas não tem por isso mantemo-la.
Expus sucintamente a problemática a Inês. Perguntou-me se algum dia pintei um quadro. Confessei-lhe que não. Ela riu-se. Afinal o seu riso era mesmo enigmático per se. Falou-me que nada do que eu dissera interessava, o artista, prosseguiu, procura incessantemente retratar o belo. A beleza virginal ou grotesca tanto importa, em certa medida toda a realidade é composta de vulgares elementos cénicos, de banais pretextos e mundanos enredos cuja facada no absurdo é dada pelo ideal, aquilo que faz dela não um caos desprovido de alma mas um chão para que ele viva. Escrever sobre Tiago é muito mais que escrever sobre um homem, Inês ama-o porque ele é muito mais que um homem. Em seus sonhos, pensamentos ou rasgos, o belo manifesta-se por uma incrível luz quente e branca a que associa a luz da madrugada ou do meio-dia primaveril. Por vezes, quando o pensa enquanto ser móvel ocorre-lhe a imagem de um cavalo branco a galopar esmagando folhas mortas choradas pelas árvores. Mas o elemento final desta tríade é Tiago. Como um semi-deus esculpido com o leite dessa luz que me falava, parece ter sido dado à vida sem antes alguém lhe ter sussurrado sua missão. Em seus olhos fulgurantes, dizia-me, vê os olhos desse mesmo cavalo pisando as fatalidades efémeras da vida, porque Tiago é essa mesma personificação, a materialização do ideal, como se o ideal ganhasse forma humana para ser perceptível a Inês, para que ela pudesse desenhar o belo pela impossibilidade de desenhar uma luz ou pelo desinteresse em desenhar um cavalo. Tiago era assim muito mais que um homem, era sobretudo um quase deus, reforçava, filho de deus mesmo, pelo seu magnetismo, pela forma como respirando prendia Inês ao pincel. E, assim até, ele era o verdadeiro autor da pintura de Inês. E, assim até, ela considerava-se uma livre escrava do seu jugo.

domingo, 5 de junho de 2011

Romeu, o anti-júlio

A vida fez dele muito mais do que uma alma penada. Não era apenas alguém torturado por dilemas remanescentes de um passado perdido no tempo. Era também alguém que levantou a bandeira branca. Paz, pediu, paz não aguento mais. Quando o estrangulamento ameaçava retirar-lhe o último fôlego de vida descobriu o sangue.
A vida fez dele muito mais que uma alma penada, ensinou-o a encontrar no sangue, no sorver do sangue, a tranquilidade, a moleza, o quase refúgio de si próprio. Se Deus o fizera alma penada, alma errante irresolúvel logo nunca morta, também o fizera vampiro, ser capaz de embriagar a sua dor.
Percorreu todos os caminhos infames, sorveu o seu corpo até ser apático, apagado e solitário. Sorveu o tempo até ser niilista, incrédulo e fatalista. Sorveu tudo o que pode toda a sua vida até que chorou. Quando chorou, chorou toda a sua vida. Nesse dia à habitual língua que se torneava erógena em volta dos seus caninos deu a primeira dentada.
Chorou todos os caminhos infames que a procura de sangue o obrigou a percorrer. Chorou todas as mentiras, todas as ilusões, todas as traições. Porque nesse dia alguém abriu a porta inesperadamente e ele estava de dentes em punho a sugar o sangue dela.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que por mais que julgasse estar a viver com ela num paraíso, por mais que o futuro pudesse iluminar o avante, era o passado que o dominava ainda.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que a última esperança contra o apocalipse estava a ser violada por uma alma penada em busca do seu refúgio. Esse foi o dia em que a afastou dos seus dentes.
Nunca teve tanta sede de sangue como nesse dia. Soltou-se das amarras que transportou enquanto se iludira, enquanto pensara poder ser quem não era. Foi um jubileu de tudo aquilo que tinha acumulado dentro de si.
Nunca teve tanta sede como nesse dia em que se reencontrou, vivo, ágil, elegante. Todo o seu corpo havia descansado o suficiente para suportar nova campanha. Tinha rejuvenescido, ganho carne, cor, graça suficientes para iludir vítimas com total facilidade.
Mas se alguma coisa houver de original nesta história foi que não foi preciso um drama convencional escrito com cancro, sida, overdose para ele perceber. Não foi preciso ter a prova acabada que o sangue não lhe traria sossego para rejeitá-lo. Bastou ela olhar-lhe de novo com os olhos de quem não vê um monstro.
E a única parte original nesta história foi que ele abriu, abriu de repente a porta do seu passado e do seu presente, mostrou-se longe de medo quem era e de quem fora. Atirou-se para a luz, para a sua luz, para a luz que mata os vampiros. Morreu para sempre para ela quando ela viu porque ele nunca se dera à luz, todo o monstro que lhe escondera. Nesse dia, enquanto a luz o desintegrava e o corroía o corpo, olhou para ela com um sorriso nos lábios, com um sorriso de quem conseguira por um dia estar à altura do seu olhar.
Romeu fora uma personagem de romance, por escolha sua.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Vasco - II

Surge um remorso, apesar de tudo, quando tento compreende-lo: fui ensinado que a beleza deriva exactamente do imcompreensivel. Se houvesse um motivo que escolhesse para definir porque gosto de uma mulher seria o seu esgar. O esgar é o circunscrever de uma expressão entre as milhentas quantidades de imagens que recebemos num curto espaço de tempo, sendo que de esse recta de recessão sobressaem sempre oscilações, momentos que arrebentam a escala, mas que só depois, muito depois, quando nos tentamos lembrar de uma mulher, voltam a surgir, aquele exacto momento que passa a constituir a galeria, o museu diria-se até. Mas então esgar é esse momento, essa imagem feita de traços, traços da face, da trajectória dos olhos, de todos os vectores de movimentos do cabelo, traços que deixam rasto. Aceitaria sem dúvida o desafio de observar cada gesto que uma mulher faz em câmara lenta, e talvez ainda mais lenta do que me seria proposto, reparar na oscilação que as sobrancelhas fazem com a variação infinitesimal da luz, o próprio cabelo que ao entranhar-se e ao soltar-se espraia um universo de novas cores, os olhos eles camaleonicos eficazes em esconder entre a contracção e dilatação da iris os pensamentos mais ocultos, e o seu peito, sobretudo o seu peito na sua destreza em subtilmente se adequar a todo o movimento do corpo, arredondando-se, largando-se, arredondando-se de novo, para se largar de novo como um coração que palpita. Pára.
Acrescenta um novo eixo, atira-me como um tapete para que me marquem as suas pegadas de perfume, para que sinta o exacto ponto em que o seu corpo intersecta a sua sombra sobre mim, esse ponto nevrálgico entre a bruma e o mar. Pára.
Deixa-te de mariquices, dá me de volta os meus olhos, câmara lenta de novo, ainda mais lenta, ainda mais lenta ainda, há um sinal que oscila debaixo do queixo, aparece e desaparece, a elipse amendoada dos olhos parece desenhar-se melhor sobre o esquerdo, depois sobre o direito, quando reparo que a própria íris parece ter perdido alguns grãos negros do centro para a sua órbita que nunca antes tinha visto. Pego na câmara dou um ponta-pé a todos os técnicos que me aparecem pela frente até o cenário, esqueço o momento, apenas quero fixar esse olhar que lançou fora como o soutien que deixa entrever no seu decote, a cauda do gato a serpentar por de tras do esconderijo. Eu vi.
É maníaco. Com certeza, mas se não vir na mulher mais que a besta doida que me vai espalmar o peito contra a cara enquanto me cavalga, seria apenas para mim não mais que uma besta doida. O fascínio da sua profundidade enquanto ser cínico por não ditado por regras universais, a vontade de agredir o seu espaço e do inteirar, de o conhecer mais que uma prisão lançada ao meu desespero é uma porta, uma porta nessa demanda louca que é encontrá-la nua, porque por isso amo mulheres nuas, essa pátria de uma rosa de espuma, essa terra de aurora silvestre, essa descodificação edeniana do mundo, como um outro mundo, como se encolhesse e coubesse na sua casa de bonecas, ou caisse no poço de Alice no país das Maravilhas, como se Alice me dessa a mão e me levasse com ela, quando, finalmente, julguei ter fotografado o seu olhar, o tal olhar, o tal olhar que julguei ter visto, o tal olhar que me levou a gatinhar até onde estou e ela me deixasse, rídiculo, nu, com uma fotografia cheia de nada a não ser o meu reflexo, câmara em punho, apanhado na capa do jornal.

Dário e Pessoa

Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, amando-se numa espiral em volta um do outro. Mas numa espiral íntima, próxima. Raspam-se, apagam-se. Avançam um sobre outro. Invadem em tangente o espaço próximo do outro e, ao invadir, roubando certa parte do outro, roubam maliciosamente certa parte da cor do outro. Assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se. Perdem vertiginosamente a sua cor inicial anteriormente antagónica e encontram uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm.
Por fim, as duas cabeças ovais embateram uma na outra. Houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças. Assemelham-se a glóbulos vermelhos caminhando por veias, assemelham-se, a um organismo processando vida. Esbatem uns contra os outros ansiosamente, caminham apressadamente pelas bifurcações que se lhes deparam. Param, recomeçam, param de novo, retomam outra vez o seu caminho, voltam a esbater-se sempre indiferentes uns ao outros.
Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos e reparo que dela escorre uma seiva transparente que me vai invadindo a superfície do corpo.
Depois, consigo finalmente abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços. Vejo os contornos da rua que o vi caminhar, quando me eram completamente invisíveis, quando eram apenas barreiras indeléveis na parede. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma ânsia que me corrói, uma obrigação que me impera, um imperativo que me sorve, sinto uma indiferença estúpida perante o cheiro do jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão.
Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheios de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.
Saio de casa. Vou passar, descalço como sempre, sobre a calçada de lisboa. Sentia-se o chão tremendo com o pesar do passo lento do negrume, na forma como os autocarros iam escasseando progressivamente mais vagos, mais sonolentos, mais pesados. Sentia-se a aproximação do vindouro, aquela forma que ele tem de nos iludir ciclicamente
Aproximo-me do miradouro. Aí reflectia como sempre Pessoa. Sentei-me a seu lado, imaginando entre os anéis do seu fumo, as caravelas partindo para a nova Índia. Falou-me de um poema seu. Nele trabalhou a imagem poética de um rei que ouvia o trigo de império a ondular no horizonte. Espectei-o. Pensei que nessa pátria de lírios frios, fustigados por ventos fortes, nada ondula, a não ser o oceano de perda igualdade, liberdade, fraternidade de descrença. Falei-lhe do grito do primeiro recém-nascido envolvido pela atmosfera siberiana que o rodeia, desse oxigénio que rapidamente aprende músculo da vida, mas que na verdade o oxida. Tal como o negrume, reforcei, tal como o além horizonte que mais não é em mim do que o presságio da forca. Se grito ao horizonte, ouço a acústica da catedral onde vou ser sacrificado. No altar, por mais que berre o grito será seco, não existirão paredes ou câmaras de eco: o grito correrá até falecer. E quando ele falou-me de como ao rei o horizonte lhe parecia a força que o agarrava a vida, eu senti, agarrando-se à minha pele, a corda da forca, no seu jeito cíclico de nos enganar.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Liliana

A Liliana sempre lhe impressionara o pai, por ser comunista e também amante da vida. Um incondicional amante de sua mãe, uma incondicional amante da luxúria. Para ele, era esse o fim máximo da libertacao do comunismo. A Liliana nunca lhe interessara muito as licoes de politica que seu pai lhe tentara incutir, havia sempre um desvio novo na curiosa linha da barba de seu quando falava, uma nova tez da sua pele com a variacao infinitesimal da luminosidade ou um novo zumbido nas redondesas. Parecera-lhe conquanto interessante uma afirmacao que uma vez encontrara perdida num livro de filosofia ‘não te limites a interpretar a realidade, transforma-a’ atribuída a Marx.

A busca de Liliana, como banalmente entre os artistas, era a da autenticidade. Mas para ela, o que era autentico era o que era virgem, puro, fresco. Para quem quer sorver a nascente da sua fonte, que lhe interessa remar sobre ela, convidar outros na margem, fazer um passeio romântico entre beijos ao luar sobre ela. O respeito perfeito pela Arte, entenda-se a compreensão da realidade, e sobretudo o respeito da não interferência, o terminar da ousadia de tentar representa-la, a recusa do paradoxo do jardineiro que ao querer semear a relva a calca. Os artistas, são um embuste dizia, procuram o verdadeiro quando e falso o que criam, não por serem hipócritas conscientemente, mas por intentarem algo fracassado a nascença.

Liliana gostaria de reencarnar, ser uma arvore, longos tempos. Deixar o que a rodeia ganhar a sua própria vida, sentindo-lhe a sua pulsacao, nascer dele como um fruto. Ser um dano colateral do conjunto de matérias e reacoes químicas que a sucederam e alienar-se. Nunca inferir sobre outrem, respeitar o curso natural dos outros, esperando que também eles soubessem por eles descobrir-se como artistas, ou seja, paneis brancos como milhares de pequenos tecidos reunidos mais línguas do que tecidos porque ávidos de saborear a vida, o sabor da vida como milhares de entendimentos possíveis dispersos numa manada de cavalos livres relinchando como se fosse essa a linguagem ultima, a indecefravel, a autoctene, a verdadeira.

Emanuel

Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido, no dia seguinte acordas e na tua memória, seca e morta, só vês a nódoa dos vossos fluídos, como que cavalos que montaram para sucumbir a derradeira barreira. Vulgar e Banal. Humano. Banal portanto. Nunca o materializes, a genuflexão é uma dádiva, protege o teu altar e sê fanático. Ser homem é ser não Deus. Se fôssemos Deus não eramos homens, porque se fôssemos Deus tudo saberíamos; por não tudo sabermos criamos ilusões. Guarda a tua como se fosse o teu hímen antes de um casamento cigano.... Nunca.



Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido. E se fores queima a tua casa e mata os teus pais. Veste-te de negro e esconde-te numa viela. Quando vires passar a pessoa certa observa-a, sorve-a, xupa-a em câmara lenta. Persegue-a até ao metro. Senta-te em frente dela e penetra-a pelo o olhar, até te tornares incómodo, até ela se assustar, até lhe cheirares o medo. Cheira-lhe o medo e esboça um sorriso sodomita, aproveita-te, delicia-te. Encosta-lhe a faca ao pescoço como ameaça, procura-lhe a confissão: que a volumetria crescente do seu medo te dê estocadas cada vez mais fortes, para que grites mais, para que vociferes, para que a pessoa a tua frente fique ainda mais apavorada, para que te venhas só da memória dos teus tempos áureos. Depois, entre o pânico da tua vítima, chantageia-a até ela finalmente confessar qual é o seu poeta preferido. E desta vez não faças merda: nunca vás para a cama com o teu poeta preferido.

sábado, 26 de março de 2011

Afonso

Assim é o mundo, assim se enganou o Zeca, disse-me. Os verdadeiros vampiros, não são os génios ocultos na sombra que dominam o povo, os verdadeiros vampiros são também aqueles que são dominados, pela sua animalidade. Esses seres que sugam do planeta vida, torrente, fonte e luz e a transformam, cagando, borrando, secretando, vomitando, em despojos neste ghetto global. A feira, os berros e as histerias, os delírios e as pompas, todos regateiam, todos se movem, primeiro soturnamente como que deambulando, depois animalescamente contra um colchão, ainda sujo dos fluídos ressequidos de outras noites. Parece que, como num quarto fechado ao odor apodrecido das suas manchas, também sobre o mundo paira, esta emanação da bestialidade, do homem besta, do homem vampiro. Dir-se-ia que é a vã cobiça, a tacanhez mundana, mas não, não seremos ingénuos ao ponto de pensar que há algo de imaterial que os consubstancia, a única coisa que os cosubstancia é a sua condição, homem uma vez, homem mil vezes, homem vezes de mais. Assim os seres se entregam àquilo que os ébrios da volumetria do seu pénis consideram ser a dança do quotidiano, mas que a Afonso mais se asssemelha a uma vila saqueada, pela imoralidade e pela desordem. Na família humilde onde nasceu, lavam-se ainda lágrimas da anterior pacatez da vila, ensinava-se os bons costumes e o trabalho, a honestidade e a rejeição da sobranceria: então, como poderia alguma vez o pobre Afonso, quando ainda jovem, aceitar a total acefalitude do seu primo, essa máquina atávica de consumir chocolates e de programas pedagogicos para criancas? Ah, como ele odiava as suas birras que o impediam de estar descansado no seu quarto a ler, e como ele desejava um dia, poder ser livre e morar fora da casa da família e conquistar essa sua liberdade. Seu primo, em tudo se deixaria levar pelo grau zero da humanidade, na sua ansia burguesa de pertencer a algo, os seus pais enchorrilavam o pequeno leitao com todas as actividades extra-curriculares que se podia imaginar, o pequeno leitao um dia tornou-se um porco, e precisou de comer mais, um dia fez-se jovem, e tal como um menino mimado sempre a chorar pela resolução dos pais, também passou a chorar pelo sistema, considerar que era o sistema educativo que o excluía. O 'Pai Estado', o 'Pai Estado' e as suas crianças mimadas, sempre a chorar, sempre a reenvendicar mais um pouco de atenção, mais uma bolsa, mais uma aspiração material, mais um direito. E o trabalho? Por onde se perdeu o trabalho? Por onde ficou a nobreza estoica dos seus antepassados que deixaram a sua pele no campo de tanto a cavarem, e que aprenderam como o suor de sol a sol era o melhor adubo para quem comer os seus próprios frutos. Foi por isto que fizeram o Estado Social? Para não se trabalhar? É esse o comunismo? A revolta dos que aspiram a uma vida acéfala e bohémia? Ide mas é trabalhar, ide libertar-vos desse marasmo, disse-me.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Otelo

Vagueia muito ao jeito do vento, óculos escuros a pender para a ponta do nariz, cigarro na ponta esquerda da boca inclinado como se fosse palha, casaco de cabedal preto sobre uma camisola decotada em 'v'. A teia hormonal subjacente a rua muda de cor, o próprio micro-cheiro emanado pelas vaginas transeuntes muda, as meninas de plástico dos anúncios da intimissimi sorriem e os ragazzos da hugo boss mingam volumetricamente entre as pernas. Cheira a Otelo, há mais algum frenesim no ar, como se de repente se visse sobrelotado do transpirar quase ofegante das mulheres, estas debatem-se furiosamente com os espelhos, apertam mais as blusas (algumas mesmo o soutien) e assumem poses mais requintadas. Quando ele passa, há quase um remoinho, as que se julgam dotadas de pernas sentam-se cruzando e descruzando-as, as que se julgam favorecidas de peito deixam cair objectos ou cruzam os braços, as que se pensam mais dotadas de rabo puxam as calças para cima e procuram que o primeiro contacto visual de Otelo seja com o seu rabo. Passa uma colega antiga de Otelo pela rua: reacção primeira, a ex-colega que tinha passado antes roga pragas a Otelo por nao a ter reconhecido e no próximo encontro com as amigas vai simultaneamente criticá-lo e inventar uma vã tentativa do mesmo de a beijar numa ocasião perdida há mais de cinco anos, a rapariga que claramente indicava ter uma copa 'c', para desgosto do nosso dandy, olha para a copa 'b' da mulher que fala com Otelo e pensa que este será uma perda de tempo, outra, com um estilo conservador e clássico, recusa-se a ser confundida com mulheres do estilo plebesco que Otelo conhece: também com inveja faz alusão a falta de depilação das esquerdistas, as seguintes mulheres à espera que Otelo por elas passe aprumam-se e esperam que ele precise de um isqueiro. O don juan atira-lhe uma frase como uma mordidela erótica no pescoço, para ele, a frase de abertura deve seguir os cânones básicos da música clássica: começa-se sempre por apresentar o tema sobre que se vai reflectir a obra. Esta afirmação tem três objectivos, fazer um elogio que desconcerte a fêmea, mostrar desbocamento suficiente para a provocar, e lançar o caminho da conversa. O caminho da conversa é simples, deve-se encaminhar a doçura para cair em quatro ou cinco confissões que depois sirvam para a provocação, para a pôr em causa; sobre pressão a mulher acaba sempre por ceder. Mas Otelo tem outros planos para os seus tempos, as ex-colegas são recursos, as ex-amigas, as ex-amigas de amigas, a prima da prima, a filha da amiga do pai, a doida que conhecera num jantar quando ainda estava comprometido, a ex-namorada de um primo mais velho, a amiga da irmã mais nova que num ano arranjou um peito desconcertante, toda essa lista é a lista de recurso, aquela inventorização das mulheres com que já houve um momentâneo clique, onde houve aquela conexão que deu a sensação de que era possível e, sobretudo, que valia a pena. Mas Otelo já se encontra saciado por momentos, e toda a boa poupança é importante, tudo deve ser mantido no cofre até ser necessário. Termina com uma frase espirituosa, um cliché que dê a impressão de haver um futuro andamento, como na música clássica, mais fogoso, mais intenso: que resolva a tensão. Continua a andar, uma rajada de vento passa humilhando uma pobre rapariga que mal se aguenta em pé quando houve um trocadilho com a Marylin Monroe. Chegado à esplanada onde estava a rapariga que o esperava, Otelo nem precisa de conversar para perceber se vai dar ou não, ri-se do nervosismo da rapariga, como da sua tentativa de ficar por cima.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Júlio

Não sou um personagem de romance. Não leio Hemingway ou Amado, não papo grupos, não tenho paciência para idolatrias parvas de iconoplastias vazias, não aspiro a ser um fiel combatente anti-falangista ou o palpitar do partido comunista nos recônditos da Amazónia. Grandes Heróis? Paladinos dourados de espada em punho pela revolução? En garde, Garrel dispara: 'faire la revolution pour le ploretariat malgrès le ploteriat?'. Na mosca.
Queres o amor? O amor eterno, inalcançável, as grandes juras, os grandes desafios, o desabar do real, a verdade chegando de vestido branco anunciando ' Rejubilai meus filhos, sou a aurora'?
Não sou um personagem de romance, evito ler livros, não sou mártir de nenhum ideal: queres mártires? Senta-te a ver os rios passar com um revolucionário de Abril que aguarda a morte. Este país não é para velhos, o pobre coitado, guerreiro inflamado de outras épocas, líder libertário de consciências, hoje só encontra conforto nalguma mística empossada num lirismo que faz das suas lágrimas a harmonia da faina. Que fizeram do seu país, como o corromperam, como o subverteram, como lhe puseram o rótulo de dispensado, quase dom quixote, certamente 'herói'. Passado, portanto.
Se queres um herói abraça-o, alberga-o no teu corpo maternal, fá-lo depositar em ti o seu desespero: pode ser que ele em ti ainda se consiga iludir de novo. Eu só tenho uma vida e quase a certeza absoluta de que só esta tenho, que quando morrer as cortinas fecham-se e nada mais há para alem dela; tudo acaba, é o fim do universo: o universo só existe em mim. Daí poluo, e poluo bué, insulto o Al Gore e faço-te chorar. Pelo monstro que sou, pelo monstro que a existência me faz tornar, ou melhor, que a consciência da existência me faz tornar.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Leão

Qual é a profundidade que se alcança com o beijo de uma mulher? Quem nivela o tom das cores, quem tece o cenário circundante? O nosso próprio cliché hollywoodesco ou esquerdista, quando abrimos os olhos e vemos os outros olhos fechados vendo os nossos próprios olhos fechados pelas pálpebras alheias. E quando o monólogo é rompido surge quase sempre o constrangimento para depois voarmos de novo por entre a nossa aldeia, os nossos pequenos preconceitos a mexerem-se tão pequenos à vista. Projectamos na pessoa da frente tudo aquilo que sempre quisemos que a pessoa da frente fosse. Aspiramos ao nosso 'own personal jesus', aquela que sirva de substância à nossa significância (a minha vida sem ti não faz sentido), aquela a quem possamos depositar-nos, e aos nosso medos, e aos nossos anseios.
Fechamos os olhos de novo e pensamos que existimos, que para alguém somos importantes, que alguém nos recordará.
Diz-se. Mas prozac é prozac e uma mulher é uma mulher. Este seria um bom lugar comum para vivermos. Mas eu faço sentido com o sem ti. Não te vou amar eternamente. Tu não me completas. Eu não me vou sacrificar por ti. Mas é o contrário que nos tentam formatar(Jesus não morreu na cruz por nós, mas por dizer que era Rei dos Judeus). Tira a cela do cavalo. Deixa a vida soltar-se. Não temas o sacudir da sua cabeça, quando cedo os seus cascos te cagam a campa.
Abre os olhos. Tira a espada cravada na pedra e apunhala a pessoa que estás a beijar. Apunhala-te. E à sociedade, vê como o sangue que desliza é a única cor verdadeira que alguma vez poderás ver nela. E depois apunhala este próprio pensamento. Faz a tua revolução permanente, destrói-te dia após dia ou, como diria Ricardo Reis, e perdoem-me a falta de precisão e posterior extrapolação, ergue a vida como quem ergue castelos de areia, ergue a vida pelo gosto de construir castelos de areia e aceita que o mar os vai destruir ciclicamente.
Talvez assim construamos um dia a ideia de qual a profundidade que se alcança com o beijo de uma mulher. Mas que no dia seguinte o mar venha e a destrua de novo, no dia seguinte mais uma vez grites 'perdoa-me pai, eu pequei', 'eu sou pecador, mea culpa, mea culpa'. Grita criança, grita e louva a Deus, desafio-te a creres em Deus como a entidade responsável por eliminar todos os dias as ideias que constróis sobre qual a profundidade que se alcança com o beijo de uma mulher. E, no dia que assim fizeres, poderás atingir, leia-se não perceber, a profundidade que se alcança com o beijo de uma mulher, tal como no dia seguinte e no dia a seguir ao seguinte. E entende que isto não é uma questão da lamechice de teres que estar atento à eterna novidade do mundo, o mundo não é eternamente novo, aliás já existia antes e existirá depois de ti, o mundo não é eternamente novo, tu é que és eternamente estúpido.
(Tira a mão do queixo, está na hora das cabeças rolarem.)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mário

Noite após noite, o ferreiro massacrava o ferro com o martelo. Julga-se um farol intermitente, uma sequência soluçada de imagens na parede, a luz do clarão que se esbate contra ele e atrasa-se a pintar na parede a sua sombra. Assim é o fardo de ser poeta, condenado a Hefesto, a que a parede revele a nossa lavoura sendo ela sempre a falta de luz, a nossa sombra, a nossa culpa, a nossa limitação. Levar a metáfora até as suas últimas consequências, selar com a nossa vida a nossa obra, fazer com que o clarão trespasse o nosso corpo, dando a toda a parede o leque das cores vivas, da carne; carnívoras portanto, carnívoras ao ponto de nos consumirem a carne, porque assim se canta o último poema, assim se escreve a tragédia, com o sangue, o nosso sangue, o drama em gente, o nosso drama, a nossa vida, a busca louca de quem sabe que não é Deus e que toda a obra apenas padece de autor. Esta é a linha, a fronteira, quem a transpõe sabe, deita o corpo na mesa, como que uma mulher que se entrega e espera.