terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

há uma mulher que me fita

E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis, imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.

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