quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Olímpia

Tenho em meu profundo crer que Olímpia já fora humana e por isso penduro o quadro de Circe na parede do meu quarto, para que ela possa todos os dias lhe prestar homenagem. Não julgo ofender a verosimilhança com tal crença, por dois motivos elementares, primeiro, porque se toda a crença é fabulação humana não vejo porque motivo me deva sentir amputado de poder moldar a minha, segundo, porque me parece ser a literatura, e perdoe-me a ousadia desta afirmação, o refúgio onde nos é permitida a fuga da lucidez niilista e corrosiva para especularmos e inscrever-mos sobre as nossas pirâmides os seres que dançam no nosso subconsciente e imaginário colectivos.
Olímpia terá sido com certeza outra coisa que gata, quando se deita no meu colo ronronando por vezes vejo o típico olhar desconfiado de uma grande mulher perante o que escrevo. Debruça-se sobre as linhas e reflecte pausadamente, depois olha-me com o fastio de quem conhece os interstícios do verdadeiro belo e parte com a enorme elegância régia da sua cauda. As grandes mulheres são assim, ligam pouco aos poetas, sabem que eles são ávidos de florestias e rodriguinhos e que da sua arte não surge nada de relevante para a resolução dos mistérios da vida. Por outro lado, como as belíssimas mulheres, Olímpia concede-me por vezes o direito de a fitar olhos nos olhos após trepar para o pedestal, não obstante o meu corpo ser maior que o seu, ela adora colocar-se acima de mim e com o olhar diz-me: venera-me. E qual imperatriz amazona eu realmente lhe obedeço e fico espectando-a com a veneração babada para lhe saciar o ego. Ela sabe que tem este poder de deslumbre sobre mim, consegue ler nos meus olhos a pura submissão e a frustração por não acordar no corpo dela a cada manhã. Já me cansei de lhe pedir para que trocássemos, que eu por um dia pudesse ser gata, e ela um dia pudesse ser homem. Ela não me nega nem me confirma, deixa-me em espera, como sempre me fizeram todas as grandes mulheres que conheci.
Mas em Olímpia também há uma mágoa profundamente humana, não poucas vezes a vejo a olhar com melancolia o céu, as árvores, os carros que passam e até as calçadas. Parece com seus olhos querer captar à fina força todas as imagens que ainda pode guardar desta coisa fugaz que é a vida, porque lembrar-nos desta coisa fugaz que é a vida também é lembrar-nos das coisas que deixamos escapar sôfregas entre os dedos, das coisas, que não soubemos captar para sempre na nossa memória. Em cada instante, há na sua posse uma saudade de uma outra coisa que não esta, a existência modulada pelas badaladas fatídicas da nossa condição perecível, de um tempo perdido na espuma das rosas onde por alienação juntamos a palma da mão na palma da mão de alguma coisa gémea. A sintonia é coisa rara e belíssima, eu e a Olímpia tentamos isso várias vezes, quando dormimos, quando lemos, quando falamos, mas é difícil porque nem ela consegue colmatar a minha solidão de para sempre ímpar, nem eu consigo me volver na matéria onírica que ela guarda na recordação. Mas tentamos, é certo, dizem que tentar é o início para qualquer relação amorosa que se preze e eu tenho por ela, embora não recíproca, uma imensa paixão e devoção.

Por vezes dá me para a estupidez de me perguntar se ela gostou de ter sido transformada em gata. Dizem-me, embora nunca tenha comprovado, que os gatos vivem menos tempo que os homens. Mas basta-me olhar para a sua beleza, a sua paz, a simetria das suas formas e verdade de todos os seus gestos que não seria preciso ser Fausto para selar tal pacto com o sangue. E quem nos dera a nós, os medricas que não partiram com Ulisses na barca para ir resgatar uma perdida princesa, afinal termos dado esse passo, não nos termos encerrado na cobardia das saias da nossa mundividência dando o salto para o abismo vertiginoso. Partindo, é certo, sem saber para onde, podendo morrer, é certo, sem um funeral onde uma amada chorasse, poderíamos regressar párias pelo nosso stress pós-traumático, poderíamos até regressar irreconhecíveis aos nossos parentes, mas para sempre seriamos orgulhosos do nosso perfil sobre o espelho. Como Olímpia o é.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

há uma mulher que me fita

E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis, imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

defesa da violência


Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora, havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais, é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria: imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico, não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me enoja.