Ele levantou os olhos em direcção de Dália e disse: estou
estéril. O primeiro intuito da mulher foi tocar-lhe o pénis e provar a verdade
dessa confissão, mas cedo percebeu que Vítor não estava a falar da sua
genitália. Tremia nas suas mãos um frenesim endiabrado, o seu olhar lançava
pequenos fogachos de dor, de músculos convulsando espasmos e de boca dançando
como um cocaínado pela face, Vítor reiterou: estou estéril. As suas pernas
também tremeram, os seus braços caíram inertes sobre a cama, tentou levantar
uma mão, depois a outra, mas nada, apenas o olhar sarcástico e acutilante da
caneta fugindo como um cavalo selvagem pelo campo. Era malicioso esse olhar,
tinha em si uma conjunção simétrica de desprezo, vingança e nojo, Vítor
percebeu que jamais a caneta queria ter sido usada para o intuito dos seus
versos, mas esperou dela outra consideração, outra solidariedade, porque na
mais pura das verdades, nem Vítor queria ter sido usado para usar uma caneta.
Não raras vezes enquanto escrevia deparava-se com a
obscenidade que estava a cometer, olhava assustado para si próprio no espelho:
que monstro é este que estou criando? Que obsceno acto de cópula e reprodução
tem a pornografia dos gestos que esboço sobre este papel? Os seus amigos
invejavam-lhe a sua capacidade de catarse pela poesia, diziam que essa seria
uma forma nobre de se livrar dos seus tormentos. Mas Vítor, sempre cativo,
escravo e penitente, nunca compreendeu muito bem o que era isso da catarse, nem
alguma vez percebeu de todo o que era isso da liberdade na escrita. Ele era
escritor por obrigação, por imperativo, por mando, Vítor um mero e pobre
seguidor, de rastos famigerados repelctos de sede, da voz que lhe segredava por
dentro do corpo.
Que voz é essa, perguntava inúmeras vezes. Um dia tentou
descortina-la, desembrulha-la, mostrar ao mundo como ela era, chamou Dália sua
namorada e disse: Meu amor olha o que eu tenho dentro de mim! Mas mal ele se
preparava para evocar o que lhe dizia a voz calou-se, ele esperou mais uns
breves momentos mas nada, absolutamente nada, ficava expectante boquiaberto sem
um único fonema lhe ser consentido. Depois, esperançoso, foi à gaveta da memória
procurando por alguma gravação da voz. Nada. Mais uma vez nada. Todos os
registos haviam sido destruídos, ele esgravatava e escarafunchava mas não
encontrava nem vivalma, alguém tinha chegado antes dele. Fez uma promessa: da
próxima vez que ouvir essa voz, vou escreve-la. E nesse exacto momento a voz
reapareceu ditando-lhe um romance do início ao fim. Vítor ficou quatro dias sem
comer e beber, dedicado inteiramente ao seu hercúleo trabalho, riu-se alto como
Fausto, regozijou-se sarcástico como Bocage, até que a voz lhe disse: obrigado,
era para isto que eu te queria, adeus. Desapareceu, Vítor percebeu como tinha
sido enganado e que o seu intuito de desvendar essa estranha voz tinha sido em
vão, na verdade, tinha apenas feito o que ela queria.
Continuou várias vezes súbdito da mesma, poderia estar na
cama com a sua namorada, dando umas linhas de coca com os amigos, jogando
xadrez com seu avô, que bastava a voz aparecer para ele largar tudo e
agarrar-se ao seu caderno. Quando renegava às directrizes da sua proxeneta ela
era intolerável, primeiro esmagava-lhe o ego com todas as revelações e
humilhações possíveis e uma vez destruído o ego possuía-o enorme e interminável
inquietação, fazia-se de tremores, suores, gemidos sorrateiros de dor. A cada
momento, essa ânsia ia crescendo, começando pelos vómitos, pelos gritos e
quando Vítor se dava conta, já os seus pulsos banhavam de sangue uma faca.
E a caneta, a caneta sabia disso tudo, não era justo o olhar
que lhe retribuirá, Vítor estava tão encarcerado quanto ela. Nessa solitária
prisão, perdeu anos de vida, os seus cabelos volveram-se brancos, os seus
dentes foram se evanescendo, os seus olhos ganhando tonalidades avermelhadas, a
sua barba crescendo floresta inóspita e muitos piolhos dançando por todo lado.
Depois de completamente sugada a sua vida e jovialidade, sentiu-se subitamente
abandonado. Gritou uma terceira vez: estou estéril. Dália assustou-se, cedo
percebeu que ele estaria perto de mais uma das suas crises, foi buscar água e
deu-lhe a beber na boca, Vítor não estava bem e desta vez não era como as
outras, ela sabia-o. Primeiro foi-se a força nos braços, depois o corpo começou
a tremer propulsionado pelas pernas, o coração acelerou num ritmo frenético.
Dália percebeu que era provação da voz, porventura esta quereria soltar-se mas
não conseguia devido a casmurrice do Vítor. Escreve Vítor, por favor, escreve,
já sabes que tens de escrever quando é assim, disse-lhe, mas Vítor disse-lhe
que não, não valia a pena, os seus braços não se mexiam. Virou os olhos para
dentro e disse à voz, o que queres de mim? Não te chega tudo o que te dei? As obras
que fecundei? Os momentos que martirizei? Mas a raiva não o levava a lado
nenhum. A convulsão aumentava de tom, a agonia alastrava-se por todo o corpo e
da sua boca já jorravam jactos de vómito por todo lado, então que gritou,
fura-me, fura-me que ela quer sair. Dália pegou na faca mas era incapaz de
furar o seu mais querido. FURA-ME CARALHO, FURA-ME JÁ. Dália tremia. FURA ME
SUA PUTA NÂO PERCEBES QUE PRECISO QUE ME FURES CARALHO. Dália continuava
hesitante. COMI A PUTA DA TUA IRMÃ NO NATAL, MENTI-TE SUA CABRA. E aí tomada
por loucura momentânea, Dália começou a esburaca-lo com a sua faca. Na cara de
Vítor nunca houvera tamanho alivio e felicidade, agradeceu a Deus ter-se
lembrado daquela mentira e morreu em paz.
E nesse exacto momento, uma voz iluminou esta história no
silêncio do meu corpo.
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