quarta-feira, 13 de julho de 2011

Inês- II

Seria talvez um sorriso de mona lisa ou talvez seria um sorriso redondamente interpretável. Enquanto conjurava o texto precedente na minha cabeça julguei ser exactamente esse o momento crítico que pretendia retratar. Se o texto pretendia ser um texto sobre o amor então porque não colocar a questão? Mas colocar a questão de forma mascarada e não assumida. Se a literatura é ou pretende ser um espaço de reflexão e construção interior e assumindo o autor envergonhadamente que pretende escrever literatura, então nada melhor que construir um texto quase que interactivo onde é o próprio leitor a definir o sorriso de Inês. Não seria também essa a intenção do pintor quando desenhou o supracitado sorriso? Fazer do quadro um potencializador de respostas interiores pelo simples artífice de servir de espelho? E, volto a frisar, para servir de espelho como se o leitor tivesse, e a meu ver tem mesmo, a capacidade de se rever, de se projectar no quadro, como se o quadro fosse uma variável dependente dele e, ainda mais, como se inconscientemente o fizesse, como se inconscientemente respondesse a uma pergunta, como se essa resposta que elabora se tornasse também ela verdadeira, matéria de facto interior, a tal ponto que ele sai reforçado, a tal ponto que a sua construção interior enquanto pessoa saia reforçada após ver-se corroborada de novo. Onde se leu construção interior poderia se ler mundividência, crença, estado de alma, experiência. Tal como toda esta resposta poderia ser a inversa se o texto ou o quadro tivesse a capacidade de perturbar o leitor ou o visionador, mas não tem por isso mantemo-la.
Expus sucintamente a problemática a Inês. Perguntou-me se algum dia pintei um quadro. Confessei-lhe que não. Ela riu-se. Afinal o seu riso era mesmo enigmático per se. Falou-me que nada do que eu dissera interessava, o artista, prosseguiu, procura incessantemente retratar o belo. A beleza virginal ou grotesca tanto importa, em certa medida toda a realidade é composta de vulgares elementos cénicos, de banais pretextos e mundanos enredos cuja facada no absurdo é dada pelo ideal, aquilo que faz dela não um caos desprovido de alma mas um chão para que ele viva. Escrever sobre Tiago é muito mais que escrever sobre um homem, Inês ama-o porque ele é muito mais que um homem. Em seus sonhos, pensamentos ou rasgos, o belo manifesta-se por uma incrível luz quente e branca a que associa a luz da madrugada ou do meio-dia primaveril. Por vezes, quando o pensa enquanto ser móvel ocorre-lhe a imagem de um cavalo branco a galopar esmagando folhas mortas choradas pelas árvores. Mas o elemento final desta tríade é Tiago. Como um semi-deus esculpido com o leite dessa luz que me falava, parece ter sido dado à vida sem antes alguém lhe ter sussurrado sua missão. Em seus olhos fulgurantes, dizia-me, vê os olhos desse mesmo cavalo pisando as fatalidades efémeras da vida, porque Tiago é essa mesma personificação, a materialização do ideal, como se o ideal ganhasse forma humana para ser perceptível a Inês, para que ela pudesse desenhar o belo pela impossibilidade de desenhar uma luz ou pelo desinteresse em desenhar um cavalo. Tiago era assim muito mais que um homem, era sobretudo um quase deus, reforçava, filho de deus mesmo, pelo seu magnetismo, pela forma como respirando prendia Inês ao pincel. E, assim até, ele era o verdadeiro autor da pintura de Inês. E, assim até, ela considerava-se uma livre escrava do seu jugo.