sábado, 14 de julho de 2012

Marilú


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo para de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.

Lira


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo parar de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Joana II


Os seus olhos acenderam-se. Um grande e vasto incêndio. O chiar das roldanas do comboio levanta-lhe o cabelo: solavanco, após solavanco, parecia haver um desrespeito por aquele momento. Pedir-se-ia silêncio, um arrastar lento como um golpe de asa, subtil, leve, enquanto via lentamente o espaço a cravar-se entre os dois. Joana debruçou-se na janela e tentou entre as oscilações da carruagem, obter a mais recta vista sobre a sua aldeia.
Há um magnetismo que só o fogo tem. São as suas cores, vividas, preenchidas, perfumadas, gordurosas. Um incrível espectáculo para os seus olhos que o bebiam sofregamente como se a sua falta os afogasse. Escondido entre os seus pensamentos, havia o desejo que o pequeno incêndio miniatura desenhado por entre as suas pestanas pudesse crescer. Crescer tanto que lhe acendesse o corpo, que lhe envolvesse o corpo, que a possuísse horas sem fim até ficar domada. Poder sentir esse ardor, esse calor, essa raiva, essa febre, toda ela consumindo-a, toda ela sendo consumida e consumada.
Preenchida. Sobretudo preenchida.
O incêndio vai-se afastando. Por entre o cântico crepitante das chamas, começa a ouvir os sons das pessoas gritando em pânico. Dir-se-ia agora triste, com uma lágrima escorrendo no canto do olho. A minha aldeia, soluçava, a minha pobre aldeia. Então despertou, olhou à sua volta e teve a noção parcial de quanto tempo tinha passado a observar o maravilhoso espectáculo do fogo. Esqueceu-se por completo que era a sua aldeia, com os seus entes queridos, com os seus espaços comuns, com os seus lugares a arder.
Ficou tempos olhando para si no espelho, sentindo nojo por esse monstro que se lhe tinha apoderado do corpo. Pegou numa faca, olhou para a sua perna e pensou ‘não voltarás a venerar o fogo’. Enquanto desenhava as letras, a dor excitava-a, sentia-se a ser rasgada como da primeira vez. A dor que ela julgara libertação, a dor que julgara nova porta, a dor que fechara porta ao fogo.
Depois de inscrever o seu número de presidiária na perna julgou poder ser feliz na sua catividade. Tapou as janelas da sua cela. Descobriu livros. Passou tempos infindáveis a ler tratados morais. Aprendeu comentários inteligentes e eloquentes sobre a loucura ocorrida em Sodoma e Gomorra. Quem a visse, nem conseguiria descobrir a sua origem.
Mas uma noite, quando a mais pura lua se erguia entre as nuvens, uma luz pálida esbatia-se-lhe pelo corpo todo nu. Entranhou-se-lhe na carne, perscrutou as barreiras, correu entre as sentinelas do costume e da civilização. Deslizou como uma serpente entre as suas antecâmaras e libertou a fera.
Uma vez reacordada, pediu a noite para se fazer véu, mais que véu passagem subterrânea até ao fogo. Aproximou-se tanto dele que já gotas fartas de suor escorriam por entre o seu corpo. Seus olhos secos mas vivos, seu nariz entupido pelo fumo, seus pés sujos de cinzas, todo o seu corpo eram papilas gustativas extasiando-se e gritando elegias ao prazer. A sua pele pálida e morta redescobriu alimento e comendo o carvão do ar, foi enegrecendo ganhando cada vez mais a cor da própria noite. Assim, abria os braços, sentindo o calor, a cor, o carvão, o cheiro a preenche-la, a liberta-la esquecendo-se por completo de tudo aquilo o que tinha aprendido nos livros da prisão, que era a sua aldeia que ardia, que eram inocentes as vozes que as chamas calavam, que era pecado venerar o fogo.
Do alto da minha esterilidade disse-lhe: Acabarás como uma estátua de sal, pobre mulher de ló. Então, virou o olhar para mim e cravou-me no peito como uma estaca o meu próprio vazio. Insuportavelmente asfixiando-me.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Joana



Cada parte do seu corpo que tocava, evocava nela um suspiro diferente. Gradativamente diferente. O suspiro saía quente, vaporoso por causa do frio inverno que era o seu corpo de mármore. A desistência sofrida, saía como a fruta consente o sumo, o primeiro precoce e ingénuo sumo, com a estridente faca a despi-la. Os homens quando partem para essa guerra levam consigo todas as facas que colheram no caminho, não há tempo para desastear, desapertar, para astúcia ou argúcia, apenas há a vil vontade de lapidar com a faca, apenas há a obrigatoriedade básica e compulsiva, a directiva que arde nas veias como uma inscrição feita que evoca suores frios e medo de um chicote. São gritos, essas cicatrizes, longas e concâvas, fundas a sangue vivo,  feitas por esse chicote, e a sua acumulação é o sinal do tempo, que passa.
O suspiro gradativamente alternava entre os vários tons que no ar ganhava, ou seja, com as diferentes partes que os meus dedos premiam. Julgava-se um piano talvez, mas certamente um xilofone de chuva a cair num charco. Um charco onde nem a minha cara se via. Mirei-o um sem número de vezes de frente, olhos nos olhos, e os seus olhos negros, na sua voraz ânsia de tudo consumir, apenas me devolviam vazio, como um espelho de um interrogatório de uma esquadra norte-americana.
Perguntei-lhe para onde tinha ido a minha imagem, ou o que restava dela agora por Joana consumida. Ela pegou-me na mão, encheu-me a com o seu peito e pediu me para a penetrar.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Rita


Quando entrei no restaurante o seu olhar apagou-se. Fitava-me portanto. Com seus grandes e contundentes olhos cristalinos como o azul. Exageradamente azuis, na quantidade portanto necessária para convencer um apreciador nato de morenas. Usava uma camisa branca cortada por riscas azul-escuras verticais, parte tapada por um blazer negro. Em cada peça de roupa, notava-se subtilmente, pela qualidade do tecido, pelo esmerar do corte, uma certa aura burguesinha que tanto haveria de fazer suspirar Cesário Verde. Era de fazer suspirar qualquer um: as calças de azul em todo igual ao do casaco subiam levemente pelo cruzar das pernas, deixando entre o cinzento do salto alto escapar, exoticamente provocador, tão pele morena para tão cinzenta época do ano. Estava frio, era uma primavera chuvosa, ainda assim, Rita, trazia no seu corpo a cor da praia. Ou de uma praia. Uma praia feita para se ouvir o vento.

Tantas foram as vezes em que eu caíra nesse mar de leite, branco, níveo. Adormeceria ‘tanto, tão perto, tão real’, nesse universo deixando-me afogar. Sorrindo. Outras mulheres têm a beleza fatal, a beleza que se nos impõe pela força, que nos range a vontade de as agarrar. Já Rita não possui nada desta beleza, faz-nos querer aconchegar, espraiar, deitar, aguardar por mais nada ver, fechar os olhos.
Tantas foram essas as vezes em que passou por mim sem saber o meu nome, sem nunca mais ser na sua vida que uma sombra. Nem talvez uma sombra, porque com certeza de uma sombra ela terá uma imagem, um sentimento por ela. E todas essas vezes, quanto me senti impotente, estéril, resignado, envergonhado. Nunca lhe falei, nem tão pouco desta vez. Nem tão pouco lhe falarei.
Rita olhava para um aristocrata, seu companheiro de classe, com o habitual ar que as aristocratas olham para os seus companheiros de classe. Podem ser gordos, desinteressantes, estúpidos, primários, machistas, toda a aristocrata avalia o seu parceiro por outros motivos. Grau de penetração no meio, cargo dentro da hierarquia, presença em determinados meios, conhecimentos noutros, nome de família, tecido e corte da roupa. Ou apenas marca.

Mas os seus olhos estavam acesos, pareciam tentar antever na brutalidade das histórias de rugby do seu pretendente, a brutalidade com que este poderia, ou não, agarrar-lhe as ancas para a cavalgar. A não ser que estivesse realmente interessada em saber como é que este tinha reacções agressivas quando determinado jogador da equipa contrária o provocava. Não. Não poderia estar, os seus olhos estavam demasiado acesos para que fosse só mero interesse intelectual. Toda ela se ruborizava com a história.
Assim, quando entrei no restaurante o seu olhar apagou-se. Ofereceu-me um olhar de mero tédio, frete, náusea. Continuei andar sem perceber que era ela que me olhava. Depois reparei que ainda me fitava mas agora com um pouco mais de interesse. Algo a deliciava no facto de eu não ter reparado nela. Só então, quando me perguntei quem era a rapariga que não parava de me fitar, percebi que de Rita se tratava. Estanquei. Olhei para ela. Os seus olhos pareciam mais azuis e reluzentes que nunca, entre seus grandes e carnosos lábios, os seus caninos emergiam dando-lhe uma aspecto felino. Pressentiu como me dominava. Saboreou essa dominação. Não por sentir alguma espécie de atracção, a náusea inicial devia-se ao exacto facto de eu nunca a poder entreter. Eu não tenho histórias de rugby, e ela sabe disso. No entanto, na sua aristocracia burguesa havia geneticamente o gosto pelo mando, por se deitar numa rede com uma chibata a bater num escravo. Seminu.

Quando o seu pretendente me olhou na busca de encontrar o justo motivo para a distracção repentina de Rita, eu baixei a cabeça, prestei-lhe reverência como a um pobre filho de classe média se lhe pede. Não que concorde com essa genuflexão, mas isto dos hábitos entranha-se nos corpos. Olhou-me com o olhar de quem também sabia que eu não tinha histórias de rugby, ou que, pelo menos, sabia que Rita sabia que eu não sabia histórias de rugby. A dominação social dá-se por meios informais, por lógicas informais.
Ela devolveu-lhe de novo o olhar que perdera por instantes, dando-lhe a entender que se tinha apenas distraído. Talvez tenha mesmo. Ou talvez ainda guardasse na sua memória, como se de uma sobremesa melosa se dissolve-se no estomago, a minha cara de estúpido e pacóvio a olhar para ela. Verdade era que eu ainda guardava na minha incapacidade de devolver um olhar à altura do seu uma mágoa. Aliado ao facto de Rita poder ser a mulher mais desinteressante à face da terra, esta será sempre, a mais inexoravelmente terrível e humilhante definição, da condição de ser homem.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Meu menino

Meu menino que choras com o medo do escuro mas que a chama nos teus olhos seria de capaz de queimar o escuro. Vês no escuro não o escuro, mas a ausência de uma voz quente, de uma mão que te estenda e que te indique o caminho. Meu menino que choras pelo medo do mundo, esse lugar habitado por seres que te regem, que te dominam, esse lugar habitado por demónios, seres diabólicos que te espancam e maltratam. Quantos são os enviados do Diabo tão certos da sua moral, tão convictos das suas normas, tão rígidos nos seus horários que te ostracizam e segregam. Perdessem eles o tempo para te ouvir, para te conhecer, que o seu bom espírito, a existir, os obrigaria a perder todas as suas certezas, convicções e rigidezas.

Meu menino que sentes na própria pele as negras a crescerem e no próprio coração as mágoas a envergonharem-te, quero te dizer que é tua a minha pele e que é teu o meu coração, que sinto a tua dor como minha porque ela realmente o é. Vem por aqui, já não estás só, no meu amparo tens refúgio, sei que ainda ouves as vozes dos demónios lá fora à tua procura para te castigar, mas posso te garantir que na minha casa estás seguro.

Nem tu imaginas como é bonito ter te visto roubar um lanche da mercearia para dar a um menino pobre que viras na rua. Sei que também a tua barriga ronca de pouco comeres e como nem sempre a comida é em demasia, mas tu não estás sozinho e sabe-lo sem saber. No teu medo, perante as atrocidades canibalescas sentes-te indefeso e sem ninguém ao teu lado, mas quando olhas para o lado consegues horizontalizar a tua dor, comungar da mesma dor inviolável que penetra, embora de maneiras diferentes, em muitos outros meninos da tua idade. Ao invés do desprezo te consumir ao ponto de te tornar um novo demónio, tu só encontras força para reunir os teus irmãos todos contigo e lutar por uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais forte. No teu choro ouve-se revolta, ouve-se um grito contra uma sociedade opressora, uma sociedade que nem te protege a ti, pobre menino, das atrocidades que te fazem, nem dos outros tão ou mais pobres do que tu. A ti nunca te vi o mal nos olhos, mas apenas a força e radicalismo. Mas choras. Choras porque és uma criança. Mas nunca foste uma criança. Para ti a infância foi alguma coisa inventada pela hipocrisia dos adultos ou o que eu chamaria de ‘veleidade burguesa’. Nunca foste ingénuo. Nunca te deixaram sê-lo.

Disseram-me que aos seis anos saíste à rua para tentar pela primeira vez a revolução levando contigo apenas um mapa e umas luvas de boxe. Parece que passaram por ti uns adultos que gozaram contigo e acharam pitorescamente engraçado. Mas eu entendi-te e não achei graça nenhuma.

Meu menino que és tão franzino, tão pequeno, que os teus braços são tão frágeis e que o teu olhar é tão triste, sei que disse que choras por seres menino mas é mentira. Vem comigo, vou fazer de ti um novo adulto, um adulto que sabe como se mover no mundo dos adultos, mas que não perdeu a capacidade de chorar. Porque um dia, se eu não morrer antes disso, ainda transformarás as luvas de boxe numa flor, para a por no cabelo duma menina.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A arte de ser fascista

Ser fascista é ter um dos maiores prazeres que se pode encontrar, imaginem só o que não é a malícia sádica torneada com o mais belo licor apto a deliciar as papilas gustativas de quem sabe beber, em copos de cristal, o ódio proletário. Ah, como sabe bem olhar directamente para a parede e ver o quadro piramidal da organização societal, como é maravilhoso cruzar as pernas ajoelhando-se, pegar no terço, empunha-lo e ouvir no silêncio o vagar tremendo das ondas a esbaterem-se na praia, que mais não são os urros das gentes gritando, que mais não são do que os insultos que se ouve quando se vai na rua. Empunhar o terço como quem empunha uma espada, deixar as suas farpas ferir a pele para que o sangue o unte e ver no poço de sangue jorrado a própria cara, lavada. Ouvir a Pátria como se só se pode ouvir a Pátria, ouvir a Pátria entendendo a linguagem da Pátria, a linguagem que só se entende pelo receptor sensorial terço, e sabe-lo, com convicção também. Pobres daqueles que renegam o terço, pobres daqueles que sobre mim se esbatem por não possuírem um terço que os guie, por não ter um terço que nos possa unir. Longos vão o tempo em que cada português usava o seu, longos vão os tempos que eramos um enxame de setas de um só sentido, hoje a cruzada ficou vazia e os paladinos de outrora foram esquecidos. Hoje as massas vagueiam em nossa procura, perseguem-me nas ruas, nas vielas e no silêncio em busca de me verem nas mãos, nas mãos que fiscalizam quando alguém passa nas portadas da sua cidadela, as marcas de quem deixou as farpas do terço comungar no seu sangue. Neste mundo perdido, a arte de ser fascista é arte de ser louco, ser-se fascista é resignar a lutar, os cursos do tempo levaram a história para outros campos, por isso ser-se fascista é preservar o seu próprio quadrado, ter ainda no seu coração a lembrança de outros tempos, saber ser sádico, gostar das agressões de que é alvo, gostar das adulterações que fizeram à sua história, gostar das generalizações abusivas de que sofre, gostar de ver a competição esquerdófila com os seus narizes suínos a farejar para ser o primeiro a encontrar algum e gritar: fascista!. Oh loucos olhos que me deram a ver o que poucos vêem, a pequenez moral das pessoas, o seu lado grotesco e animal disfarçado de cordeiro anónimo, de pequena formiga esquecida entretida com o seu umbigo, e que só se revela o seu lado demoníaco e diabólico quando confrontada com o fascista, aí a criatura pequena e adorável, mansa e serena, moderada e democrática aparece bruta, feroz, impetuosa e pronta a matar. Deus agradeça aos fascistas, por ao menos conseguirem ressuscitar a virilidade que parece esquecida em todas as outras instâncias. Acordem massas! Acordem que o facho vem a caminho! Persigam o facho, gastem todo o vosso tempo atrás do facho, que o facho agradecerá sem dúvida a vossa preocupação, e não retaliará, não por não ser facho, que realmente o é, mas porque enquanto se preocupam em perseguir o facho o vosso próprio camarada vos enraba. E o facho ri-se, loucas as gargalhadas lúcidas, loucas as gargalhadas de quem já só vê no ódio dos infiéis o amor de Deus, de Deus a quem decidiu entregar a vida, e glosando, o verdadeiro fascista é movido por sentimentos de amor.

Não, mas deixem a Pátria ficar profanada por suínos, estúpidos, putas, crápulas, acéfalos, ignorantes, presunçosos, snobes, ambiciosos, judas que o facho é que é louco. Aliás até o próprio o admite.

Geraldo

Serpenteio como o vento entre as texturas físicas dos corpos que sobre a rua passam. Demoro-me a focar directamente num plano próximo, aumento a sua resolução. Estão tão próximo que quase julgo o seu tecido as minhas pálpebras. Há oscilações na cor, alguém tapa a luz, ouve-se vozes, as pessoas conversam. Ouço as suas vozes como o fundo de uma gruta ouve o lago. Repetem-se, interagem, repetindo-se, há um jogo próximo que repetem cada vez que uma nova personagem se lhes depara. Sento-me a observar os seus modos, as suas teatralidades, os seus gracejos, que repetem, são os novos modelos de uma publicidade qualquer, são os actores de uma grande peça encenada chamada de ‘a representação social e a apologia da felicidade’. As datas certas existe a obrigatoriedade de ser feliz, de estar eufórico, há como que uma papila gustativa social que quando devidamente estimulada vai ficando cada vez mais erógena, quanto mais alguém dá provas de histerismo, mais em seu redor as pessoas ficam propensas a participar desse histerismo e assim contribuem para o aumento geral, progressivo do histerismo. Há uma epopeia histérica, uma Ilíada, o som dos copos de cristal ecoa, a banda toca, há negrume no ar de fumo de charuto. As luzes do palco estão semicerradas, no entanto sobre a plateia, pequenos focos de luz surgem. As pessoas apressam-se em chegar a tempo de apanhar o foco, correm na esperança doida de ficar para a memória, de serem vistas em futuras ocasiões, de serem os mártires da apologia da felicidade, mas a verdade é que quando a terra acabar, nem um pouco de tempo alguém vai pensar em ir ver a tonelada de lixo informático que produziremos ao longo de muitos séculos. A lembrançazinha. O ridículo existencial de quem existe.