terça-feira, 5 de abril de 2011

Dário e Pessoa

Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, amando-se numa espiral em volta um do outro. Mas numa espiral íntima, próxima. Raspam-se, apagam-se. Avançam um sobre outro. Invadem em tangente o espaço próximo do outro e, ao invadir, roubando certa parte do outro, roubam maliciosamente certa parte da cor do outro. Assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se. Perdem vertiginosamente a sua cor inicial anteriormente antagónica e encontram uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm.
Por fim, as duas cabeças ovais embateram uma na outra. Houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças. Assemelham-se a glóbulos vermelhos caminhando por veias, assemelham-se, a um organismo processando vida. Esbatem uns contra os outros ansiosamente, caminham apressadamente pelas bifurcações que se lhes deparam. Param, recomeçam, param de novo, retomam outra vez o seu caminho, voltam a esbater-se sempre indiferentes uns ao outros.
Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos e reparo que dela escorre uma seiva transparente que me vai invadindo a superfície do corpo.
Depois, consigo finalmente abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços. Vejo os contornos da rua que o vi caminhar, quando me eram completamente invisíveis, quando eram apenas barreiras indeléveis na parede. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma ânsia que me corrói, uma obrigação que me impera, um imperativo que me sorve, sinto uma indiferença estúpida perante o cheiro do jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão.
Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheios de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.
Saio de casa. Vou passar, descalço como sempre, sobre a calçada de lisboa. Sentia-se o chão tremendo com o pesar do passo lento do negrume, na forma como os autocarros iam escasseando progressivamente mais vagos, mais sonolentos, mais pesados. Sentia-se a aproximação do vindouro, aquela forma que ele tem de nos iludir ciclicamente
Aproximo-me do miradouro. Aí reflectia como sempre Pessoa. Sentei-me a seu lado, imaginando entre os anéis do seu fumo, as caravelas partindo para a nova Índia. Falou-me de um poema seu. Nele trabalhou a imagem poética de um rei que ouvia o trigo de império a ondular no horizonte. Espectei-o. Pensei que nessa pátria de lírios frios, fustigados por ventos fortes, nada ondula, a não ser o oceano de perda igualdade, liberdade, fraternidade de descrença. Falei-lhe do grito do primeiro recém-nascido envolvido pela atmosfera siberiana que o rodeia, desse oxigénio que rapidamente aprende músculo da vida, mas que na verdade o oxida. Tal como o negrume, reforcei, tal como o além horizonte que mais não é em mim do que o presságio da forca. Se grito ao horizonte, ouço a acústica da catedral onde vou ser sacrificado. No altar, por mais que berre o grito será seco, não existirão paredes ou câmaras de eco: o grito correrá até falecer. E quando ele falou-me de como ao rei o horizonte lhe parecia a força que o agarrava a vida, eu senti, agarrando-se à minha pele, a corda da forca, no seu jeito cíclico de nos enganar.

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