domingo, 5 de outubro de 2014

Demonstração matemática



Mergulho na escuridão solitária das minhas pálpebras
o ruminar incessante dos meus pensamentos cresce
enquanto vai ficando calva a minha inocência

e pergunto-me
se eles são barcos desvelados carregando vida
ou se a vida semeia correntes marítimas de mentira
se há veneno na ordenação fatídica das vertiginosas plataformas
ou se a terra esboça uma sociologia alquímica sobre a pulverização do crime

apesar do rubor infantil das minhas saias ser inalienável
vou acumulando a sedução de pegadas várias sobre os meus braços
depois numa orfandade mais madura habito esta cidade perdida
onde não é certo se o bailado das gentes produz algo de vital
ou se tudo é apenas tentativa de coagulação
abafo em ruído
para o silêncio do grande palco.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

S.

Conhecemo-nos nas redes sociais (sim isto é um relato pós-moderno com o selo do continente estampado nas nádegas) ela adicionou-me. Falamos pela primeira vez, ela não era muito assídua na conversa, dava os habituais tempos de espera de quem não quer parecer desesperada. A conversa durou cerca de 30 minutos e ela depois desligou. Voltamos a esse hábito duas ou três vezes, tentei meter a conversa do costume sobre gostos e locais onde saía, disse-me que morava em Santarém, estudava no Porto, não saía muito. Depois desapareceu durante uns meses até que voltou a entrar em contacto comigo, era Verão havia o Serralves em Festa e eu puxei para nos encontrar-mos por lá mas novamente o meu convite foi declinado. Voltou a partir do chat e eu fiquei por casa a fumar a minha solidão. Muitas horas volvidas reapareceu com a interpelação ‘estou toda molhada’. Eu fiquei surpreso não só por não ser usual as mulheres confessarem tal coisa perto de mim mas também porque não é usual elas ficarem dessa forma à minha beira. Agradeci a confissão, perguntei-lhe a que se devia e ela rematou que se estava a masturbar. Resolvido o enigma, incitou-me a masturbar-me com ela, proposta que eu aceitei verbalmente apesar de manter como um pornógrafo frustrado sempre com as mãos no teclado. Imaginou uma situação em que estávamos no carro após eu ter ido busca-la a casa, tínhamos parado num bosque e eu tinha começado a despi-la sem pedir licença. Eu usei a minha etiqueta proto-burguesa com expressões como ‘depois entro dentro de ti’ e ‘gemo de prazer ao ver a tua casa a contorcer-se’ mas ela cedo marcou a vontade de querer passar um degrau acima: contava-me como queria o meu caralho dentro da sua cona a parti-la toda enquanto lhe espetava o dildo no cu, palmadas no rabo, pirocadas nas bochechas e esporradelas na cara. Admito que foi um pouco estranho para mim apesar de me ter narcisicamente como libertino, terminado o filme compreendi o porquê de ela ter saído do chat das outras vezes: ela apenas queria as redes sociais para ter este tipo de conversas. Tinha namorado, chamado G., e dizia que lhe era completamente fiel, ele sabia de esta prática e haviam combinado as suas regras: apenas mensagens nada de fotos. Às vezes, contava-me ela, G. tinha ciúmes, aparecia-lhe em casa repentinamente para terminar o festim, muito embora ela tinha o hábito de se estar a masturbar enquanto falava com G. e outros homens ao mesmo tempo. A pergunta que me surgiu na mente era como seria possível os pais não repararem que entrava um rapaz no quarto dela tantas vezes para se envolver com ela, a resposta foi simples ‘ eles sabem que eu preciso’.
Tinha-lhe sido diagnosticado primeiro uma perturbação de personalidade boderline mas depois tinham afinado para outra doença ainda mais sedutora para o fetiche social: ninfomania. O pai, homem conservador e católico, ficara inicialmente perplexo mas ao ver a sua filha atulhada em drunfos, compreendeu que o bem estar da sua filha passava por viver sem comprimidos e saciar a sua vontade, quanto a S. adorava foder e considerava ser algo de extremamente identitário e revolucionário na sua personalidade, enunciava que a sua vagina eram as suas garras e não queria abdicar da sua liberdade, o pai, G., mãe, o irmão apenas tinham de se conformar com isso.
Fiquei curioso quanto ao seu processo de descoberta sexual, relatou-me como aos 15 anos tinha ido à sala e aguardado que o seu irmão fosse à casa de banho para ficar sós com um amigo dele. O miúdo, como o irmão, tinha menos dois anos que ela, ficou atónito ao ver o comando da playstation lhe ser retirado das mãos e sentir a sua mão ser levada por S. até a vagina – ‘diz ao meu irmão que vais te embora e depois entras à socapa no meu quarto’. Depois da sua primeira aventura com esta presa, S. foi meses depois à esteticista depilar-se. Tinha-lhe sido incumbido um homem porque supostamente só deveria tratar lhe das pernas, mas mal o trintão se preparava para sair do gabinete, S. pegou-lhe na mão e fez a brincadeira que fez com o amigo do irmão, contudo sem sexo vaginal – ‘era demasiado velho para mim’. Ainda hoje falava com eles os dois, chamava-lhes as suas crias, fazia sessões de masturbação à distância diariamente bem como conversas telefónicas sobre temas do quotidiano.
Uma vez também me ligou, S. não tinha grande coisa a dizer, gostava de filmes de acção, Nicholas Sparks e de apanhar sol, talvez por isso a conversa esgotou-se em 20 minutos. Houve um daqueles silêncios em que nos parece fazer ver a cortesia a esperar a despedida, mas subitamente sussurra-me ‘ estou a masturbar-me desde o início da chamada’. Eu fiquei mais uma vez abananado com as palavras dela e senti-me um voyeur punheteiro enquanto ouvia os gemidos e orgasmos múltiplos dela. Ligou me mais uma vez e o ritual repetiu-se. Á terceira foi extremamente fastioso e monótono. Á quarta deixei de atender.
Com mais meses em cima voltou à carga ‘ Bunny tenho saudades tuas’, eu voltei a insistir para nos encontrarmos pessoalmente, devo admitir que mais que o sexo procurava conhecer a pessoa, em S. fascinava-me a sua força e visceralidade, a sua capacidade de se impor e de se aceitar enquanto tal sem se deixar comer pelas tretas positivistas dos psiquiatras. Mas S. não arredava, queria ser fiel ao namorado e não queria sexo. Propus-lhe que fossemos amigos e que nos encontrássemos sem nenhum propósito outro senão o da conversa e do álcool. Ela rejeitou vezes sem conta, nenhum de nós cedeu no braço-de-ferro, eu recusava-me a ser mais um dos fantoches dela e ela recusava-se a encontrar-se comigo. ‘Com quantas gajas já fodeste, bunny?’ – eu fui à minha lista, contei e apresentei-lhe o meu relatório, ela retorquiu que já não queria nada comigo, eu estava demasiado ‘mastigado e batido’. Tive de aceitar a recusa dela.
Numa Sexta-Feira quando ia a caminho do Porto recebi uma mms contendo dois redondos seios com a ergonomia adequada para poder caber na palma de uma mão. Perguntei-lhe o que significava aquilo – ‘apeteceu-me, estou muito triste’. O médico tinha-lhe dito que os seus ovários estão a estropiar, eu inventei uma miscelânea pseudo-psicanalítica defendendo que talvez o ímpeto sexual desacerbado do seu corpo fosse apenas uma vontade de reproduzir enquanto ainda fosse possível – ela riu-se muito e achincalhou o meu pudor. Voltei a tentar vê-la pessoalmente, ela declinou, o braço de ferro voltou e acabou como de costume – afastamento durante mais uns meses. Durante esse tempo fomos falando, S. conseguiu ser fecundada pelo namorado e debateu-se entre a sua vontade de ser mãe e a importância do curso de medicina por acabar. Acabou por abortar. Acabou com o namorado, voltou para o namorado, passou-se mais um ano onde contactamos muito esporadicamente.
Até que um dia quando estava a dormir num sofá do plano b senti uma mão no cachaço a acordar-me, levantei a cabeça e disse: está tudo bem João, estou bem a sério. Mas era uma cara seráfica de olhos de mel e de lábios finos – sou eu bunny, a tua mummy. A minha bebedeira não me impôs uma resposta certa ao enigma, lembro me do cheiro do cabelo castanho claro no meu nariz enquanto uma língua me passava pelo pescoço, o meu pénis a ser acariciado por fora das calças e tentei beija-la ao que ela se afastou e riu-se – sabes que sou fiel ao G. . Aí tudo fez estupidamente sentido para mim e dei um salto de estupefação – és um porco nunca me ligas nenhuma. Respondi-lhe que não era bem assim enquanto olhava à volta com medo que alguém estivesse a ver a cena. Vi um amigo meu a observar-me enquanto se ria e chamava o resto da matilha para presenciar. Não foi boa ideia, ainda hoje sou lembrado pelo estalo que levei de seguida.
No dia seguinte recebi uma mensagem a convidar-me para ir a casa dela com tudo explicitado: hora, local, indicações e pedidos de perfume. Apareci à porta bastante nervoso e assustado com a expectativa de não conseguir saciá-la como ela desejava. Entrei em casa, ela convidou-me para o sofá e apareceu outro rapaz. Tudo parecia estar a correr bem quando me apercebi que não era o colega de casa dela mas sim G., na minha cabeça tudo parecia simples: G. ficou com ciúmes e quis me encher de porrada para largar a namorada. Levantei-me prontamente cerrando os punhos e caminhei na direção dele – o meu primo ensinou-me a regra geral das porradas, quem dá a primeira bem dada ganha sempre. S. pôs-se no meio e disse me para me acalmar e respirar fundo. G. continuava sentado no sofá embora aparentemente nervoso. ‘Pedi ao G. para fazer sexo contigo mas concordamos que tinha de ser á frente dele e não nos podemos beijar’. A minha pergunta foi, claro, porquê eu? Ao que ela me respondeu tal como muitas outras mulheres – não és só tu. Relaxei um pouco tentando-me convencer que se aquilo seria natural para eles também o poderia ser para mim. G. ofereceu-me uma ganza, eu pedi que pusesse no youtube o shine on you crazy Diamond dos pink floyd. S. começou a desapertar-me as calças e enfiou-me dentro da boca dela, eu gemi pleno de sentimentos confusos até que olhei para G., este parecia incomodado mas também resignado. Aguentei aquele número um pouco por estupidez, sentia-me extremamente mal por estar a infligir dor ao rapaz, até que S. se despiu e os seus olhos ficaram consumidos de prazer e excitação, S. explicou-me: o G. adora ver me foder. Relaxei um pouco as leituras de Paul Ricoeur e comecei a aproveitar-me da vagina apertada de S. sem deixar de me questionar tantas vezes como seria possível ela foder tanto e ainda ter aquele formato tão apetecível. S. falou comigo com o registo hardcore do costume ‘cona’, ‘caralho’, ‘esporra’, ‘faz me sangrar’ etc. Havia nos seus olhos um misto de sofrimento e alívio, não sabia bem se estava a fode-la ou injetar-lhe morfina. S. começou a ser cada vez mais assertiva e a requerer ainda mais da minha performance sexual até que os seus pedidos se tornaram insuportáveis para G., este aproximou-se, deu-me uma palmada nas costas e disse: ‘está boa puto, podes largar’. Por cortesia e por respeito eu aceitei, sentei-me no sofá a assistir ao corpo de S. a arquear-se e vociferar: até hoje nunca vi sexo tão à bruta como o que eles faziam. Terminado o acto, G. foi tomar banho e S. aproximou-se de mim. Beijou-me loucamente, sentou-se em cima do meu pénis, cavalgou-me violentamente, apercebeu-se que o meu orgasmo estava perto e saiu para que eu ejaculasse na sua cara. Pegou no meu telemóvel e tirou uma selfie com o sémen a escorrer-lhe pela face. Pediu-me que guardasse a foto e que me masturbasse recorrentemente a vê-la. Eu anuí e pus a minha maior cara de frustrado/revoltado pois G. acabara de sair da casa de banho. Ele pediu-me desculpa por me ter interrompido arguindo que eu não estava a dar conta do serviço, aceitei o reparo e disse-lhe que já tinha tido uma namorada que tinha acabado comigo por ser mau na cama. G. riu-se, trocámos os ‘é fodido’ do costume e fui-me embora.
Quatro meses depois, S. ligou-me a dizer que estava grávida, perguntei-lhe se era do G. ou de qualquer outra rapaz que tinha sido presa dele(s), ela disse me que tinham feito o teste e que era mesmo de G., nunca me parecera tão feliz.

- um dia tens de escrever a minha história
- já te disse que só escrevo poemas e maus


Aviso



A revista Apócrifa prepara-se para lançar como tema Cerberus a.k.a o cão da morte. Enquanto Aníbal Luxúria Canibal se encontra distraído a espetar facas em si próprio, os restantes cães já reagiram. A cadelinha laica condenou veemente a intenta por julgar que existe uma clara vertente propagandística na publicação semanal organizada pelo defunto Colectivo Pré-Contemporâneo, segundo a mesma, a subjugação de todo o ser animado a questiúnculas políticas sem nenhum relevo para a redenção da terra pode ter consequências inestimadas para a oxigenação da vida. Posição diferente assumiu Rex o cão polícia que considerou normal haver este tipo de iniciativas por parte de jovens ‘é melhor andarem a escrever textos do que metidos na droga ou no PAN – estamos fartos de auto-empossadas vanguardas da classe operária’ e acrescentou ‘desde que esteja tudo dentro da normatividade jurídica não me parece haver grande problema’. Já o Snoopy tem muitas dúvidas em relação ao virtuosismo deste tipo de iniciativas, relembra que adulterações dos nomes podem ser particularmente injuriosas tal como a que foi feita por Snoop Dog, indivíduo que não só nunca pediu desculpa publicamente pelo seu acto como demonstrou desprezo oportunístico na mudança de nome para outro que fosse mais vendável em face da sua nova ‘orientação musical’. Esta não é a primeira notícia de queixas semelhantes, veja-se o caso dos herdeiros de Sir Camelot que ficaram atónitos quando apareceu um actor de filmes pornográficos com o nome ‘ Sir Cum a Lot’. Contudo, os detentores oficiais de toda a obra material e imaterial de mitos civilizacionais defuntos não vão esperar que tal ofensa ocorra de novo ‘só nós podemos retirar proveito económico dos trabalhos deles’, assumiu publicamente o cão David, ‘a minha vida toda passei a fugir de um monstro de bullying chamado Doberman chamado Talento que andava sempre com um Bulldog chamado Perícia Crítica’ – (nota: esta informação pode parecer desenquadrada mas o autor considera que toda a questão biografista-ó-confessional tem sido injustamente desprezada pelos críticos literários’).  Já a caniche de apartamento, também presente nesta categoria genérica obituária, apareceu a ladrar durante uma ocupação ao lidl enquanto mijava no talho flores de plástico como etiquetas a dizer: obrigado por me defenderes meu cão-de-fila / afinal sempre posso morrer em cada verso meu que é lido em público / mas tu estarás lá sempre para mim’. Quanto ao lobo-das-estepes, herdeiro da parte remanescente da obra, observou-se uma curiosa reacção : ‘pá esses putos estúpidos deviam largar a Porfírio e malhar masé nos cabrões do Gota Institut – estou farto que me carimbem o cu!’.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Toda a verdade que encerro: O fim

Caminho em volta dos abismos, pelas estreitas margens que ainda permitem a minha passagem. Certas pessoas admiram-me a coragem, chamam-me visceral, mas poucas ou quase nenhuma seriam as que queriam acordar do meu lado. Sou uma espécie de espécie rara que gostam de visitar numa feira de aberrações, engaiolado à devida distância de segurança das crias. Depois os discursos paternalistas de contingência: ‘vês o que dá meteres-te nas drogas, João, porta-te sempre direito’. É mais fácil culparem as drogas, apesar de eu nunca as ter consumido, porque a ausência de resposta para as minhas perguntas é muto mais aterradora. O cidadão comum prefere caricaturara-me, reduzir-me à insignificância de um conselho tão pobre como o que dá a seu filho.
E a solidão permanece, eu que de tanta coisa me rodeio acabo sempre solitário. A vida é um conceito fictício criado pelo eu, o eu é um conceito fictício criado pelo corpo, mas os corpos são aglomerações da matéria, contingências ridículas e fantasmáticas. Para quem é ateu e não acredita na alma, é atroz observarmos ao canibalismo dos corpos que se munem de uma justificação, dizem ser um eu que precisa de sobreviver, com esse argumento absorvem matéria alheia. O corpo é um violador por natureza, um bandido, um pilhador, um criminoso. O sémen junta-se ao óvulo, cria-se o embrião vampiro de sua mãe, depois o recém-nascido vampiro dos seus pais, depois a criança que come, caga, come, caga e continua a comer, comer, comer tudo o que lhe rodeia quanto pode absorver. É grotesco mas esse corpo ganha formas cada vez maiores na proporção exacta da imoralidade do seu crime. Depois cansado do sangue inocente das suas mãos descobre o abismo, pretende voltar a retribuir ao mundo tudo o que lhe roubou, dispersar-se na largura dos astros, devolver matéria à matéria, unir-se à terra e alimentar as larvas. Uma vez destruída a unidade, a contingência do corpo é destruída e espalhada pulverizada por outros corpos também eles sedentos de matéria embora ainda não conscientes do seu crime. Viver é o acto de ignorância e infantilidade quanto à sua condição de besta insaciável.
Claro que o eu, perniciosa construção do corpo, volve-se em argumentos de medo sobre a morte. Repudia-a e pendura-lhe mitos infindáveis para que o corpo não se destrua, decapitando o eu. O corpo que desejar a morte, tem de saber alhear-se dessa ditadura que o eu lhe crava. E quando a morte caminha, o corpo alheado do eu enche-se de paz, sorri, por encontrar finalmente o descanso de ter que parar de alimentar o eu. Chega um estado de mera contemplação do que lhe rodeia, sem intuitos de comer, foder, beber ou fumar. Entra em sintonia perfeita com o Cosmos. Percebe que lhe pertence a ele mais que ao eu, e se apenas pertence ao Cosmos está sempre acompanhado, se se dispersar em outros corpos continua a fazer parte de outra coisa maior. Morrer é o único acto que permite o fim da solidão e ter por irmão tudo em tudo. Ser. Genuinamente e despojado de qualquer intuito castrador.
Para mim morrer é salvação. Morrer é o fim dos pesadelos, dos suores frios, dos traumas, dos gritos a meio da noite, da infâmia que me percorre o corpo, dos vícios, das ressacas, da humilhação, das ânsias, da dor que me consome todos os dias. Morrer é também o fim do sentimento de revolta por ter sido sempre rejeitado pela sociedade, pela família, pelos pares. Fim da vontade de matar quem me agrediu diariamente. Fim de quem me tratou como bastardo. Fim de ter de habitar as montanhas de Zaratustra. Fim da vontade de dinamitar a ordem societal que me castrou os sonhos. Fim do nojo da minha nudez e do ódio por quem sou. Fim da minha impotência e esterilidade. Fim dos meus sonhos e aspirações ridículas. Morrer é fim. Morrer é paz.

( * * * )

O lobo das estepes entrega-se ao julgamento dos carneiros para que estes possam rejubilar e sentir as suas certezas reforçadas. Há festa no condado. Hoje é dia de alegria. A sua pele dará um bom casaco para o vice-rei.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Olímpia

Tenho em meu profundo crer que Olímpia já fora humana e por isso penduro o quadro de Circe na parede do meu quarto, para que ela possa todos os dias lhe prestar homenagem. Não julgo ofender a verosimilhança com tal crença, por dois motivos elementares, primeiro, porque se toda a crença é fabulação humana não vejo porque motivo me deva sentir amputado de poder moldar a minha, segundo, porque me parece ser a literatura, e perdoe-me a ousadia desta afirmação, o refúgio onde nos é permitida a fuga da lucidez niilista e corrosiva para especularmos e inscrever-mos sobre as nossas pirâmides os seres que dançam no nosso subconsciente e imaginário colectivos.
Olímpia terá sido com certeza outra coisa que gata, quando se deita no meu colo ronronando por vezes vejo o típico olhar desconfiado de uma grande mulher perante o que escrevo. Debruça-se sobre as linhas e reflecte pausadamente, depois olha-me com o fastio de quem conhece os interstícios do verdadeiro belo e parte com a enorme elegância régia da sua cauda. As grandes mulheres são assim, ligam pouco aos poetas, sabem que eles são ávidos de florestias e rodriguinhos e que da sua arte não surge nada de relevante para a resolução dos mistérios da vida. Por outro lado, como as belíssimas mulheres, Olímpia concede-me por vezes o direito de a fitar olhos nos olhos após trepar para o pedestal, não obstante o meu corpo ser maior que o seu, ela adora colocar-se acima de mim e com o olhar diz-me: venera-me. E qual imperatriz amazona eu realmente lhe obedeço e fico espectando-a com a veneração babada para lhe saciar o ego. Ela sabe que tem este poder de deslumbre sobre mim, consegue ler nos meus olhos a pura submissão e a frustração por não acordar no corpo dela a cada manhã. Já me cansei de lhe pedir para que trocássemos, que eu por um dia pudesse ser gata, e ela um dia pudesse ser homem. Ela não me nega nem me confirma, deixa-me em espera, como sempre me fizeram todas as grandes mulheres que conheci.
Mas em Olímpia também há uma mágoa profundamente humana, não poucas vezes a vejo a olhar com melancolia o céu, as árvores, os carros que passam e até as calçadas. Parece com seus olhos querer captar à fina força todas as imagens que ainda pode guardar desta coisa fugaz que é a vida, porque lembrar-nos desta coisa fugaz que é a vida também é lembrar-nos das coisas que deixamos escapar sôfregas entre os dedos, das coisas, que não soubemos captar para sempre na nossa memória. Em cada instante, há na sua posse uma saudade de uma outra coisa que não esta, a existência modulada pelas badaladas fatídicas da nossa condição perecível, de um tempo perdido na espuma das rosas onde por alienação juntamos a palma da mão na palma da mão de alguma coisa gémea. A sintonia é coisa rara e belíssima, eu e a Olímpia tentamos isso várias vezes, quando dormimos, quando lemos, quando falamos, mas é difícil porque nem ela consegue colmatar a minha solidão de para sempre ímpar, nem eu consigo me volver na matéria onírica que ela guarda na recordação. Mas tentamos, é certo, dizem que tentar é o início para qualquer relação amorosa que se preze e eu tenho por ela, embora não recíproca, uma imensa paixão e devoção.

Por vezes dá me para a estupidez de me perguntar se ela gostou de ter sido transformada em gata. Dizem-me, embora nunca tenha comprovado, que os gatos vivem menos tempo que os homens. Mas basta-me olhar para a sua beleza, a sua paz, a simetria das suas formas e verdade de todos os seus gestos que não seria preciso ser Fausto para selar tal pacto com o sangue. E quem nos dera a nós, os medricas que não partiram com Ulisses na barca para ir resgatar uma perdida princesa, afinal termos dado esse passo, não nos termos encerrado na cobardia das saias da nossa mundividência dando o salto para o abismo vertiginoso. Partindo, é certo, sem saber para onde, podendo morrer, é certo, sem um funeral onde uma amada chorasse, poderíamos regressar párias pelo nosso stress pós-traumático, poderíamos até regressar irreconhecíveis aos nossos parentes, mas para sempre seriamos orgulhosos do nosso perfil sobre o espelho. Como Olímpia o é.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

há uma mulher que me fita

E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis, imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

defesa da violência


Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora, havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais, é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria: imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico, não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me enoja.