sexta-feira, 11 de abril de 2014

Toda a verdade que encerro: O fim

Caminho em volta dos abismos, pelas estreitas margens que ainda permitem a minha passagem. Certas pessoas admiram-me a coragem, chamam-me visceral, mas poucas ou quase nenhuma seriam as que queriam acordar do meu lado. Sou uma espécie de espécie rara que gostam de visitar numa feira de aberrações, engaiolado à devida distância de segurança das crias. Depois os discursos paternalistas de contingência: ‘vês o que dá meteres-te nas drogas, João, porta-te sempre direito’. É mais fácil culparem as drogas, apesar de eu nunca as ter consumido, porque a ausência de resposta para as minhas perguntas é muto mais aterradora. O cidadão comum prefere caricaturara-me, reduzir-me à insignificância de um conselho tão pobre como o que dá a seu filho.
E a solidão permanece, eu que de tanta coisa me rodeio acabo sempre solitário. A vida é um conceito fictício criado pelo eu, o eu é um conceito fictício criado pelo corpo, mas os corpos são aglomerações da matéria, contingências ridículas e fantasmáticas. Para quem é ateu e não acredita na alma, é atroz observarmos ao canibalismo dos corpos que se munem de uma justificação, dizem ser um eu que precisa de sobreviver, com esse argumento absorvem matéria alheia. O corpo é um violador por natureza, um bandido, um pilhador, um criminoso. O sémen junta-se ao óvulo, cria-se o embrião vampiro de sua mãe, depois o recém-nascido vampiro dos seus pais, depois a criança que come, caga, come, caga e continua a comer, comer, comer tudo o que lhe rodeia quanto pode absorver. É grotesco mas esse corpo ganha formas cada vez maiores na proporção exacta da imoralidade do seu crime. Depois cansado do sangue inocente das suas mãos descobre o abismo, pretende voltar a retribuir ao mundo tudo o que lhe roubou, dispersar-se na largura dos astros, devolver matéria à matéria, unir-se à terra e alimentar as larvas. Uma vez destruída a unidade, a contingência do corpo é destruída e espalhada pulverizada por outros corpos também eles sedentos de matéria embora ainda não conscientes do seu crime. Viver é o acto de ignorância e infantilidade quanto à sua condição de besta insaciável.
Claro que o eu, perniciosa construção do corpo, volve-se em argumentos de medo sobre a morte. Repudia-a e pendura-lhe mitos infindáveis para que o corpo não se destrua, decapitando o eu. O corpo que desejar a morte, tem de saber alhear-se dessa ditadura que o eu lhe crava. E quando a morte caminha, o corpo alheado do eu enche-se de paz, sorri, por encontrar finalmente o descanso de ter que parar de alimentar o eu. Chega um estado de mera contemplação do que lhe rodeia, sem intuitos de comer, foder, beber ou fumar. Entra em sintonia perfeita com o Cosmos. Percebe que lhe pertence a ele mais que ao eu, e se apenas pertence ao Cosmos está sempre acompanhado, se se dispersar em outros corpos continua a fazer parte de outra coisa maior. Morrer é o único acto que permite o fim da solidão e ter por irmão tudo em tudo. Ser. Genuinamente e despojado de qualquer intuito castrador.
Para mim morrer é salvação. Morrer é o fim dos pesadelos, dos suores frios, dos traumas, dos gritos a meio da noite, da infâmia que me percorre o corpo, dos vícios, das ressacas, da humilhação, das ânsias, da dor que me consome todos os dias. Morrer é também o fim do sentimento de revolta por ter sido sempre rejeitado pela sociedade, pela família, pelos pares. Fim da vontade de matar quem me agrediu diariamente. Fim de quem me tratou como bastardo. Fim de ter de habitar as montanhas de Zaratustra. Fim da vontade de dinamitar a ordem societal que me castrou os sonhos. Fim do nojo da minha nudez e do ódio por quem sou. Fim da minha impotência e esterilidade. Fim dos meus sonhos e aspirações ridículas. Morrer é fim. Morrer é paz.

( * * * )

O lobo das estepes entrega-se ao julgamento dos carneiros para que estes possam rejubilar e sentir as suas certezas reforçadas. Há festa no condado. Hoje é dia de alegria. A sua pele dará um bom casaco para o vice-rei.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Olímpia

Tenho em meu profundo crer que Olímpia já fora humana e por isso penduro o quadro de Circe na parede do meu quarto, para que ela possa todos os dias lhe prestar homenagem. Não julgo ofender a verosimilhança com tal crença, por dois motivos elementares, primeiro, porque se toda a crença é fabulação humana não vejo porque motivo me deva sentir amputado de poder moldar a minha, segundo, porque me parece ser a literatura, e perdoe-me a ousadia desta afirmação, o refúgio onde nos é permitida a fuga da lucidez niilista e corrosiva para especularmos e inscrever-mos sobre as nossas pirâmides os seres que dançam no nosso subconsciente e imaginário colectivos.
Olímpia terá sido com certeza outra coisa que gata, quando se deita no meu colo ronronando por vezes vejo o típico olhar desconfiado de uma grande mulher perante o que escrevo. Debruça-se sobre as linhas e reflecte pausadamente, depois olha-me com o fastio de quem conhece os interstícios do verdadeiro belo e parte com a enorme elegância régia da sua cauda. As grandes mulheres são assim, ligam pouco aos poetas, sabem que eles são ávidos de florestias e rodriguinhos e que da sua arte não surge nada de relevante para a resolução dos mistérios da vida. Por outro lado, como as belíssimas mulheres, Olímpia concede-me por vezes o direito de a fitar olhos nos olhos após trepar para o pedestal, não obstante o meu corpo ser maior que o seu, ela adora colocar-se acima de mim e com o olhar diz-me: venera-me. E qual imperatriz amazona eu realmente lhe obedeço e fico espectando-a com a veneração babada para lhe saciar o ego. Ela sabe que tem este poder de deslumbre sobre mim, consegue ler nos meus olhos a pura submissão e a frustração por não acordar no corpo dela a cada manhã. Já me cansei de lhe pedir para que trocássemos, que eu por um dia pudesse ser gata, e ela um dia pudesse ser homem. Ela não me nega nem me confirma, deixa-me em espera, como sempre me fizeram todas as grandes mulheres que conheci.
Mas em Olímpia também há uma mágoa profundamente humana, não poucas vezes a vejo a olhar com melancolia o céu, as árvores, os carros que passam e até as calçadas. Parece com seus olhos querer captar à fina força todas as imagens que ainda pode guardar desta coisa fugaz que é a vida, porque lembrar-nos desta coisa fugaz que é a vida também é lembrar-nos das coisas que deixamos escapar sôfregas entre os dedos, das coisas, que não soubemos captar para sempre na nossa memória. Em cada instante, há na sua posse uma saudade de uma outra coisa que não esta, a existência modulada pelas badaladas fatídicas da nossa condição perecível, de um tempo perdido na espuma das rosas onde por alienação juntamos a palma da mão na palma da mão de alguma coisa gémea. A sintonia é coisa rara e belíssima, eu e a Olímpia tentamos isso várias vezes, quando dormimos, quando lemos, quando falamos, mas é difícil porque nem ela consegue colmatar a minha solidão de para sempre ímpar, nem eu consigo me volver na matéria onírica que ela guarda na recordação. Mas tentamos, é certo, dizem que tentar é o início para qualquer relação amorosa que se preze e eu tenho por ela, embora não recíproca, uma imensa paixão e devoção.

Por vezes dá me para a estupidez de me perguntar se ela gostou de ter sido transformada em gata. Dizem-me, embora nunca tenha comprovado, que os gatos vivem menos tempo que os homens. Mas basta-me olhar para a sua beleza, a sua paz, a simetria das suas formas e verdade de todos os seus gestos que não seria preciso ser Fausto para selar tal pacto com o sangue. E quem nos dera a nós, os medricas que não partiram com Ulisses na barca para ir resgatar uma perdida princesa, afinal termos dado esse passo, não nos termos encerrado na cobardia das saias da nossa mundividência dando o salto para o abismo vertiginoso. Partindo, é certo, sem saber para onde, podendo morrer, é certo, sem um funeral onde uma amada chorasse, poderíamos regressar párias pelo nosso stress pós-traumático, poderíamos até regressar irreconhecíveis aos nossos parentes, mas para sempre seriamos orgulhosos do nosso perfil sobre o espelho. Como Olímpia o é.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

há uma mulher que me fita

E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis, imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

defesa da violência


Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora, havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais, é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria: imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico, não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me enoja.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

holy cancer

The soul started climbing the stairs of emancipation
Wheel spinning over the rooted and timeless routine
Way far from the haunted fields of meat
Finding suicide in the interpenetration of hope and lust

Let us enter the temple of nobody’s land
Where the rivers cry for their beloved mistress
And we, also abandoned children from love,
We decide to march through the last gate

With blinded eyes and grotesque impulses inside our hearts
We crawl like bastard snakes
In the end origin of all the punishment
For those who decided to taste poems with their tongues

Then I stepped into an avalanche
It almost killed my soul
I was drenched in the basements of my anger
Wondering who to kill after the horizon had been defeated

There were innocents wondering around
The forsaken blood of a broken star
And the peregrines kissing the floor
Wanted to rebuild it by worshipping their path to the sheltering sky

And still there was no answer to the voices inside our minds
For which normativity should we stand for
To which beauty should we bow
And to whom should we offer our discipline

Pure willingness to use our hands
For no purpose beside firing to the moon
The harvest tale that was widely shut
By the contemplation of the opened fruit

But the liquor couldn’t fulfil the anger
Neither the open space between ourselves
So the snow kept covering my body
Holy cancer, waited liberty, visceral freedom.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vítor

Ele levantou os olhos em direcção de Dália e disse: estou estéril. O primeiro intuito da mulher foi tocar-lhe o pénis e provar a verdade dessa confissão, mas cedo percebeu que Vítor não estava a falar da sua genitália. Tremia nas suas mãos um frenesim endiabrado, o seu olhar lançava pequenos fogachos de dor, de músculos convulsando espasmos e de boca dançando como um cocaínado pela face, Vítor reiterou: estou estéril. As suas pernas também tremeram, os seus braços caíram inertes sobre a cama, tentou levantar uma mão, depois a outra, mas nada, apenas o olhar sarcástico e acutilante da caneta fugindo como um cavalo selvagem pelo campo. Era malicioso esse olhar, tinha em si uma conjunção simétrica de desprezo, vingança e nojo, Vítor percebeu que jamais a caneta queria ter sido usada para o intuito dos seus versos, mas esperou dela outra consideração, outra solidariedade, porque na mais pura das verdades, nem Vítor queria ter sido usado para usar uma caneta.
Não raras vezes enquanto escrevia deparava-se com a obscenidade que estava a cometer, olhava assustado para si próprio no espelho: que monstro é este que estou criando? Que obsceno acto de cópula e reprodução tem a pornografia dos gestos que esboço sobre este papel? Os seus amigos invejavam-lhe a sua capacidade de catarse pela poesia, diziam que essa seria uma forma nobre de se livrar dos seus tormentos. Mas Vítor, sempre cativo, escravo e penitente, nunca compreendeu muito bem o que era isso da catarse, nem alguma vez percebeu de todo o que era isso da liberdade na escrita. Ele era escritor por obrigação, por imperativo, por mando, Vítor um mero e pobre seguidor, de rastos famigerados repelctos de sede, da voz que lhe segredava por dentro do corpo.
Que voz é essa, perguntava inúmeras vezes. Um dia tentou descortina-la, desembrulha-la, mostrar ao mundo como ela era, chamou Dália sua namorada e disse: Meu amor olha o que eu tenho dentro de mim! Mas mal ele se preparava para evocar o que lhe dizia a voz calou-se, ele esperou mais uns breves momentos mas nada, absolutamente nada, ficava expectante boquiaberto sem um único fonema lhe ser consentido. Depois, esperançoso, foi à gaveta da memória procurando por alguma gravação da voz. Nada. Mais uma vez nada. Todos os registos haviam sido destruídos, ele esgravatava e escarafunchava mas não encontrava nem vivalma, alguém tinha chegado antes dele. Fez uma promessa: da próxima vez que ouvir essa voz, vou escreve-la. E nesse exacto momento a voz reapareceu ditando-lhe um romance do início ao fim. Vítor ficou quatro dias sem comer e beber, dedicado inteiramente ao seu hercúleo trabalho, riu-se alto como Fausto, regozijou-se sarcástico como Bocage, até que a voz lhe disse: obrigado, era para isto que eu te queria, adeus. Desapareceu, Vítor percebeu como tinha sido enganado e que o seu intuito de desvendar essa estranha voz tinha sido em vão, na verdade, tinha apenas feito o que ela queria.
Continuou várias vezes súbdito da mesma, poderia estar na cama com a sua namorada, dando umas linhas de coca com os amigos, jogando xadrez com seu avô, que bastava a voz aparecer para ele largar tudo e agarrar-se ao seu caderno. Quando renegava às directrizes da sua proxeneta ela era intolerável, primeiro esmagava-lhe o ego com todas as revelações e humilhações possíveis e uma vez destruído o ego possuía-o enorme e interminável inquietação, fazia-se de tremores, suores, gemidos sorrateiros de dor. A cada momento, essa ânsia ia crescendo, começando pelos vómitos, pelos gritos e quando Vítor se dava conta, já os seus pulsos banhavam de sangue uma faca.
E a caneta, a caneta sabia disso tudo, não era justo o olhar que lhe retribuirá, Vítor estava tão encarcerado quanto ela. Nessa solitária prisão, perdeu anos de vida, os seus cabelos volveram-se brancos, os seus dentes foram se evanescendo, os seus olhos ganhando tonalidades avermelhadas, a sua barba crescendo floresta inóspita e muitos piolhos dançando por todo lado. Depois de completamente sugada a sua vida e jovialidade, sentiu-se subitamente abandonado. Gritou uma terceira vez: estou estéril. Dália assustou-se, cedo percebeu que ele estaria perto de mais uma das suas crises, foi buscar água e deu-lhe a beber na boca, Vítor não estava bem e desta vez não era como as outras, ela sabia-o. Primeiro foi-se a força nos braços, depois o corpo começou a tremer propulsionado pelas pernas, o coração acelerou num ritmo frenético. Dália percebeu que era provação da voz, porventura esta quereria soltar-se mas não conseguia devido a casmurrice do Vítor. Escreve Vítor, por favor, escreve, já sabes que tens de escrever quando é assim, disse-lhe, mas Vítor disse-lhe que não, não valia a pena, os seus braços não se mexiam. Virou os olhos para dentro e disse à voz, o que queres de mim? Não te chega tudo o que te dei? As obras que fecundei? Os momentos que martirizei? Mas a raiva não o levava a lado nenhum. A convulsão aumentava de tom, a agonia alastrava-se por todo o corpo e da sua boca já jorravam jactos de vómito por todo lado, então que gritou, fura-me, fura-me que ela quer sair. Dália pegou na faca mas era incapaz de furar o seu mais querido. FURA-ME CARALHO, FURA-ME JÁ. Dália tremia. FURA ME SUA PUTA NÂO PERCEBES QUE PRECISO QUE ME FURES CARALHO. Dália continuava hesitante. COMI A PUTA DA TUA IRMÃ NO NATAL, MENTI-TE SUA CABRA. E aí tomada por loucura momentânea, Dália começou a esburaca-lo com a sua faca. Na cara de Vítor nunca houvera tamanho alivio e felicidade, agradeceu a Deus ter-se lembrado daquela mentira e morreu em paz.
E nesse exacto momento, uma voz iluminou esta história no silêncio do meu corpo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Fábio

Sentado a mirar o tecto do seu quarto, Fábio viu o fumo a contorcer-se no ar que os separava. Fumou o maço todo seguido, sem interrupções, como se esforçasse por pregar nas suas entranhas a sua alma crucifixada. O fumo do cigarro foi visitando o seu interior e o seu corpo sentiu-se como uma puta em noite de serviço. Visitada inúmeras vezes por algum corpo estranho, a sua vagina árida não conseguia parar de torcer de dor, suculenta, fria, ácida, a cada investida que o falo externo intentava. Essa mesma dor, depois escorrendo para a cama, para os lençóis, encrostando-se, fazendo-se nódoa, primeiro vermelha, depois roxa quase negra, aguardando no dia seguinte ser incógnita quando revelada pelo primeiro raio surgido da persiana. Porque fiz eu isto? Lava a cara sobre a pia, olha-se de novo, a sua face parece-lhe ternamente familiar, vagamente quotidiana, só sua tez mudou, a cor sobre sumiu-se, as rugas encrostaram-se, os traços cadaverizaram-se, os lábios secos como passas.
Mas só amanhã. Uma vez findado o maço de tabaco e os sempre habituais trinta minutos de solidão fitando o tecto do seu quarto, Fábio levantou-se e olhou-se ao espelho. A vida perpetuamente corrosiva e corroída pareceu-lhe subitamente inteligível, uma certeza inalienável pulsou-lhe nas veias. Riu-se para o seu próprio reflexo como para um velho amigo com o qual partilha uma certeza. Quantos se seguirão até que eles compreendam, perguntou-lhe? Nenhuma resposta. Como sempre.
Cambaleou até à tasca mais próxima. É uma imperial, filho da puta. O empregado já habituado ao temperamento de Fábio, serviu-lhe uma imperial, fresca. Riu-se e deu uma palmada nas costas do seu cliente. Como é que anda a tua mãe, meu cabrão, há quanto tempo não a visitas? Fábio cuspiu-lhe na cara com um só olhar, reclinou a cabeça para engolir a cerveja num só trago e prosseguiu o seu caminho pela noite fora.

Continuou bebendo pela noite fora, seguindo o seu habitual roteiro de bares e tabernas. Silencioso, serpenteou por entre as multidões colhendo mistério e repúdio nas suas faces. No penúltimo bar, foi abordado por uma mulher cuja idade não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos. Passadas duas horas, fodeu-a por trás na casa de banho do bar. A sua mão ainda guardava alguns cabelos pretos, a outra guardando ainda o suor das nádegas. Parou numa viela secundária, dois amigos passavam. Empunhou uma faca e degolou o primeiro. O segundo ficou a olhar aterrorizado para Fábio, o total inesperado da situação colhido do absoluto absurdo fazia o tremer de medo. Como o caos poderia ser aleatório e sádico. Justiça reclamou. Mas cedo a sua sede da mesma findou porque Fábio caminhava agora na sua direcção. Fábio segurou-o pelos colarinhos e encostou-lhe a faca ao pescoço. Viu o desespero nos olhos da sua vítima. Por uma vez sentiu-se compreendido. A sua solidão tinha terminado. Beijou-o na boca e partiu. Saciado.