E em cada noite que sento bêbado na calçada há uma mulher
que me fita, silenciosa, fumando o seu cigarro. Eu acendo o meu, ficamos-mos a
olhar mutuamente, olhos nos olhos selando a nossa paixão nesse silêncio onde os
gritos das multidões são ofuscados pela nossa tensão. Ela é bela, a luz dos
lampiões ilumina-lhe a face, o recorte do peito, os dedos finos e lânguidos que
tanto poderiam derreter o meu corpo. Eu sei, ela sabe-o, que o ela tocar-me ou
eu tocá-la levaria a que desaparecêssemos deste mundo. Somos algo de imaginado um
do outro, somos a evocação do bramir do mar do outro, imperscrutáveis,
imperturbáveis, inexoráveis e improfanáveis. Não choramos o não sabermos o nome
um do outro, e eu, amante confesso da textura do corpo feminino, não deploro o
não poder ser envolvido todo corpo acolhido pela sua vagina, bastava um toque
dela para eu me desmoronar e tornar-me pó. Ela guarda as portas da morte, ela
guarda a minha finitude e concretude. Por isso mantenho-me ilusão criada por
ela, pela sua bebedeira, pelos bafos do seu charro, e ela mantêm-se, delírio de
poeta, ninfa do orvalho nocturno, minha alucinação. Depois alguém me toca, é
certo, desperta-me do meu estado, quando volvo os olhos para onde ela se
encontrava, já ela se desaparecera. Digo a essa pessoa: acabei de ver a mulher
mais bonita do mundo, e ela devolve-me risos, és sempre o mesmo Vasco. Pois sou
meu caro, pois sou, nem sei como não ser, porque sou refém desse poema que por
vezes surge por germinar na estéril terra do meu potestativo cadáver.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
defesa da violência
Em discussão acesa com alguém que profetizava a suposta
indulgência dos delinquentes obriguei à parte beligerante a ficar extremamente
ofendida pela minha defesa da violência. Primeiro, como delinquente que sinto
ser fiquei extremamente ofendido com o paternalismo bacoco de tal senhora,
havia um certo sentimento de pena que o seu discurso indiciava pela absolvição
que propunha baseada num discurso já velho sobre as condições socioeconómicas
dos mesmos. Propunha ela antes o que chamava de ‘incentivo positivo’ como
garante de uma reeducação social conforme a normatividade de forma a
enquadra-los e curá-los. Ora a cura deve ser a escolha do individuo, e por isso
sou completamente contra a ideia da existência de um serviço nacional de saúde
com pretensões messiânicas e proselitistas: quem poderá obrigar à vida quem
decide por sua lucidez pactuar com a morte?
Por outro lado, parece-me que a violência é uma linguagem
própria, cuja gramática obedece aos instintos animalescos que a suposta
civilização tentou alienar. Esses cárceres vitorianos trataram de excluir
aquilo que julgavam bárbaro e desumano, renegando os mais vitais impulsos do
Homem, tal como a vontade de fazer a guerra, matar e dinamitar. Enclausurados
dentro do nosso complexo reptiliano, a nossa condição humana seria obrigada a
vergar-se perante o nascimento de um ‘homem novo’ cujas limitações são tão bem
explícitas no quadro de Dali ‘a criança geopolítica aguardando o nascimento do
homem novo’. E por isso Alegre cantava não só o canto, mas também as armas.
Também por isso, a direita conservadora e reacionária tratou
de colocar os ‘super-homens’ nietzschianos dentro do saneado involucro do ‘transgressor
das normas’. Para esses, os libertários são alguém que cultiva a transgressão
pela transgressão, sem entender que esses são os únicos poetas que transformam
a poesia em vida e fazem a propaganda bakuniana pelo acto, ou seja, a tentativa
de emancipação das massas pelo exemplo e pelo símbolo, possibilitando uma
mimética a seguir em prol de um ideal de sociedade avesso à opressão da norma.
Para quem só compreende a violência, para quem preza a
violência, para quem ama a violência porque não comunicar através dela para que
estes a entendam? Há em todos os psicopatas uma solidão tremenda, a solidão de
quem se vê atordoado pela falta de capacidade de se ver entendido, pela mundividência
do homem comum ser-lhe completamente estrangeira. Assim, o psicopata escolhe a
agressão e o assassínio nem só pelo prazer que estes lhe dão, mas também para
poder expressar e comunicar com o outro, revelando-lhe os meandros da sua
própria história e mundividência.
Claro está que a senhora com quem me digladiava tratou de
defender uma outra forma de lidar com essas ‘maçãs podres’, sugerindo a terapêutica
do ‘incentivo positivo’. Em vez de agredir aquele que rompe com as normas societais,
é necessário incentiva-lo positivamente propiciando-lhe mérito e reconhecimento
social cada vez que ele se enquadra no cânone. Conquanto, parece-me mais uma
vez que estamos perante uma máscara ocultadora de uma acção ainda mais
perniciosa. Porque escolher a chantagem em vez da violência? Porque comprar um
gato, um cão ou uma criança pela via do regozijo material e não pelo antiquado
tabefe?
Propus-lhe que reflectisse sobre a seguinte alegoria:
imaginemos então um pai marialva português que incentiva o filho a foder umas
gajas e que cada vez que este o fazia lhe dava um abraço felicitando-o com
todas as honras. O filho, após tal carinho do pai, vai-se se sentir reajustado
com a sua carência, mas, ironia das ironias, este filho é homossexual. Viverá
então a sua vida oscilando entre a vontade de poder ter o reconhecimento do seu
pai e a legítima afirmação da sua sexualidade. Por isso, a educação pela via da
norma civilizada não representa por si uma via de salvação do homem da
infelicidade e, pelo contrário, pode ser repressiva e induzir o cidadão em
tristeza e infelicidade. A sagaz senhora retorquiu que o problema do meu exemplo
seria que as normas que o pai professava eram erradas e que por isso o problema
estava mais uma vez no conteúdo e não no processo. Tal argumentário obrigou-me
a duas ressalvas, primeiramente, de um ponto de vista estritamente filosófico,
não há como justificar que uma norma social tem superioridade moral perante
outra, secundariamente, apresentei um novo exemplo. Neste mundo capitalista em
que vivemos, onde os meios de comunicação não cessam de agir no sentido de uma homogeneização
cultural e valorativa, há um novo imperativo categórico kantiano: o da
eficiência e o da competência. É estranho observar tantas manifestações de ódio
contra o racismo e tão poucas contra o darwinismo social, se a cor da pele de
um homem não deve afectar o prezar que temos por ele, porque devemos nós
secundarizar para a categoria de ‘inúteis’ aqueles que têm menos competências
intelectuais para se adaptar às ‘exigências do mundo moderno’? Daí também a
hipocrisia do super-nomeado ’12 anos de escravo’, porque retrata a vida de um
preto, é certo, mas não de um preto normal, a personagem principal é
sucessivamente apresentada como um individuo replecto de competências
intelectuais que pretendem suscitar sobre o espectador um sentimento de repulsa
por tão magna criatura ser submetida à condição de escravo.
No mundo pós-Lenine parece-me passível que se chegue à
compreensão que tanto a opressão pelas sanções positivas efectuadas pela
normatividade social, como a violência esquecida para os tempos da lei de
Talião são duas formas idênticas de formatação, sendo que as constituições
podem optar por uma ou por outra, sendo idênticas na sua génese, agressividade
e intuito. E ainda assim urge contar a quantidade de adolescentes que se julgam
obesas, de jovens que se martirizam por terem um pénis reduto, dos estúpidos
que morrem à fome desempregados e das rosas que choram pela vizinha ter mais
espinhos e um vermelho mais rubro. E enquanto todo este manancial de dor humana
fermenta e floresce, os normopatas passeiam incólumes. E só isso realmente me
enoja.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
holy cancer
The soul started climbing the stairs of emancipation
Wheel spinning over the rooted and timeless routine
Way far from the haunted fields of meat
Finding suicide in the interpenetration of hope and lust
Let us enter the temple of nobody’s land
Where the rivers cry for their beloved mistress
And we, also abandoned children from love,
We decide to march through the last gate
With blinded eyes and grotesque impulses inside our hearts
We crawl like bastard snakes
In the end origin of all the punishment
For those who decided to taste poems with their tongues
Then I stepped into an avalanche
It almost killed my soul
I was drenched in the basements of my anger
Wondering who to kill after the horizon had been defeated
There were innocents wondering around
The forsaken blood of a broken star
And the peregrines kissing the floor
Wanted to rebuild it by worshipping their path to the sheltering sky
And still there was no answer to the voices inside our minds
For which normativity should we stand for
To which beauty should we bow
And to whom should we offer our discipline
Pure willingness to use our hands
For no purpose beside firing to the moon
The harvest tale that was widely shut
By the contemplation of the opened fruit
But the liquor couldn’t fulfil the anger
Neither the open space between ourselves
So the snow kept covering my body
Holy cancer, waited liberty, visceral freedom.
Wheel spinning over the rooted and timeless routine
Way far from the haunted fields of meat
Finding suicide in the interpenetration of hope and lust
Let us enter the temple of nobody’s land
Where the rivers cry for their beloved mistress
And we, also abandoned children from love,
We decide to march through the last gate
With blinded eyes and grotesque impulses inside our hearts
We crawl like bastard snakes
In the end origin of all the punishment
For those who decided to taste poems with their tongues
Then I stepped into an avalanche
It almost killed my soul
I was drenched in the basements of my anger
Wondering who to kill after the horizon had been defeated
There were innocents wondering around
The forsaken blood of a broken star
And the peregrines kissing the floor
Wanted to rebuild it by worshipping their path to the sheltering sky
And still there was no answer to the voices inside our minds
For which normativity should we stand for
To which beauty should we bow
And to whom should we offer our discipline
Pure willingness to use our hands
For no purpose beside firing to the moon
The harvest tale that was widely shut
By the contemplation of the opened fruit
But the liquor couldn’t fulfil the anger
Neither the open space between ourselves
So the snow kept covering my body
Holy cancer, waited liberty, visceral freedom.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Vítor
Ele levantou os olhos em direcção de Dália e disse: estou
estéril. O primeiro intuito da mulher foi tocar-lhe o pénis e provar a verdade
dessa confissão, mas cedo percebeu que Vítor não estava a falar da sua
genitália. Tremia nas suas mãos um frenesim endiabrado, o seu olhar lançava
pequenos fogachos de dor, de músculos convulsando espasmos e de boca dançando
como um cocaínado pela face, Vítor reiterou: estou estéril. As suas pernas
também tremeram, os seus braços caíram inertes sobre a cama, tentou levantar
uma mão, depois a outra, mas nada, apenas o olhar sarcástico e acutilante da
caneta fugindo como um cavalo selvagem pelo campo. Era malicioso esse olhar,
tinha em si uma conjunção simétrica de desprezo, vingança e nojo, Vítor
percebeu que jamais a caneta queria ter sido usada para o intuito dos seus
versos, mas esperou dela outra consideração, outra solidariedade, porque na
mais pura das verdades, nem Vítor queria ter sido usado para usar uma caneta.
Não raras vezes enquanto escrevia deparava-se com a
obscenidade que estava a cometer, olhava assustado para si próprio no espelho:
que monstro é este que estou criando? Que obsceno acto de cópula e reprodução
tem a pornografia dos gestos que esboço sobre este papel? Os seus amigos
invejavam-lhe a sua capacidade de catarse pela poesia, diziam que essa seria
uma forma nobre de se livrar dos seus tormentos. Mas Vítor, sempre cativo,
escravo e penitente, nunca compreendeu muito bem o que era isso da catarse, nem
alguma vez percebeu de todo o que era isso da liberdade na escrita. Ele era
escritor por obrigação, por imperativo, por mando, Vítor um mero e pobre
seguidor, de rastos famigerados repelctos de sede, da voz que lhe segredava por
dentro do corpo.
Que voz é essa, perguntava inúmeras vezes. Um dia tentou
descortina-la, desembrulha-la, mostrar ao mundo como ela era, chamou Dália sua
namorada e disse: Meu amor olha o que eu tenho dentro de mim! Mas mal ele se
preparava para evocar o que lhe dizia a voz calou-se, ele esperou mais uns
breves momentos mas nada, absolutamente nada, ficava expectante boquiaberto sem
um único fonema lhe ser consentido. Depois, esperançoso, foi à gaveta da memória
procurando por alguma gravação da voz. Nada. Mais uma vez nada. Todos os
registos haviam sido destruídos, ele esgravatava e escarafunchava mas não
encontrava nem vivalma, alguém tinha chegado antes dele. Fez uma promessa: da
próxima vez que ouvir essa voz, vou escreve-la. E nesse exacto momento a voz
reapareceu ditando-lhe um romance do início ao fim. Vítor ficou quatro dias sem
comer e beber, dedicado inteiramente ao seu hercúleo trabalho, riu-se alto como
Fausto, regozijou-se sarcástico como Bocage, até que a voz lhe disse: obrigado,
era para isto que eu te queria, adeus. Desapareceu, Vítor percebeu como tinha
sido enganado e que o seu intuito de desvendar essa estranha voz tinha sido em
vão, na verdade, tinha apenas feito o que ela queria.
Continuou várias vezes súbdito da mesma, poderia estar na
cama com a sua namorada, dando umas linhas de coca com os amigos, jogando
xadrez com seu avô, que bastava a voz aparecer para ele largar tudo e
agarrar-se ao seu caderno. Quando renegava às directrizes da sua proxeneta ela
era intolerável, primeiro esmagava-lhe o ego com todas as revelações e
humilhações possíveis e uma vez destruído o ego possuía-o enorme e interminável
inquietação, fazia-se de tremores, suores, gemidos sorrateiros de dor. A cada
momento, essa ânsia ia crescendo, começando pelos vómitos, pelos gritos e
quando Vítor se dava conta, já os seus pulsos banhavam de sangue uma faca.
E a caneta, a caneta sabia disso tudo, não era justo o olhar
que lhe retribuirá, Vítor estava tão encarcerado quanto ela. Nessa solitária
prisão, perdeu anos de vida, os seus cabelos volveram-se brancos, os seus
dentes foram se evanescendo, os seus olhos ganhando tonalidades avermelhadas, a
sua barba crescendo floresta inóspita e muitos piolhos dançando por todo lado.
Depois de completamente sugada a sua vida e jovialidade, sentiu-se subitamente
abandonado. Gritou uma terceira vez: estou estéril. Dália assustou-se, cedo
percebeu que ele estaria perto de mais uma das suas crises, foi buscar água e
deu-lhe a beber na boca, Vítor não estava bem e desta vez não era como as
outras, ela sabia-o. Primeiro foi-se a força nos braços, depois o corpo começou
a tremer propulsionado pelas pernas, o coração acelerou num ritmo frenético.
Dália percebeu que era provação da voz, porventura esta quereria soltar-se mas
não conseguia devido a casmurrice do Vítor. Escreve Vítor, por favor, escreve,
já sabes que tens de escrever quando é assim, disse-lhe, mas Vítor disse-lhe
que não, não valia a pena, os seus braços não se mexiam. Virou os olhos para
dentro e disse à voz, o que queres de mim? Não te chega tudo o que te dei? As obras
que fecundei? Os momentos que martirizei? Mas a raiva não o levava a lado
nenhum. A convulsão aumentava de tom, a agonia alastrava-se por todo o corpo e
da sua boca já jorravam jactos de vómito por todo lado, então que gritou,
fura-me, fura-me que ela quer sair. Dália pegou na faca mas era incapaz de
furar o seu mais querido. FURA-ME CARALHO, FURA-ME JÁ. Dália tremia. FURA ME
SUA PUTA NÂO PERCEBES QUE PRECISO QUE ME FURES CARALHO. Dália continuava
hesitante. COMI A PUTA DA TUA IRMÃ NO NATAL, MENTI-TE SUA CABRA. E aí tomada
por loucura momentânea, Dália começou a esburaca-lo com a sua faca. Na cara de
Vítor nunca houvera tamanho alivio e felicidade, agradeceu a Deus ter-se
lembrado daquela mentira e morreu em paz.
E nesse exacto momento, uma voz iluminou esta história no
silêncio do meu corpo.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Fábio
Sentado a mirar o tecto do seu quarto, Fábio viu o fumo a
contorcer-se no ar que os separava. Fumou o maço todo seguido, sem
interrupções, como se esforçasse por pregar nas suas entranhas a sua alma
crucifixada. O fumo do cigarro foi visitando o seu interior e o seu corpo
sentiu-se como uma puta em noite de serviço. Visitada inúmeras vezes por algum
corpo estranho, a sua vagina árida não conseguia parar de torcer de dor, suculenta,
fria, ácida, a cada investida que o falo externo intentava. Essa mesma dor,
depois escorrendo para a cama, para os lençóis, encrostando-se, fazendo-se
nódoa, primeiro vermelha, depois roxa quase negra, aguardando no dia seguinte
ser incógnita quando revelada pelo primeiro raio surgido da persiana. Porque fiz
eu isto? Lava a cara sobre a pia, olha-se de novo, a sua face parece-lhe
ternamente familiar, vagamente quotidiana, só sua tez mudou, a cor sobre
sumiu-se, as rugas encrostaram-se, os traços cadaverizaram-se, os lábios secos
como passas.
Mas só amanhã. Uma vez findado o maço de tabaco e os sempre
habituais trinta minutos de solidão fitando o tecto do seu quarto, Fábio levantou-se
e olhou-se ao espelho. A vida perpetuamente corrosiva e corroída pareceu-lhe
subitamente inteligível, uma certeza inalienável pulsou-lhe nas veias. Riu-se
para o seu próprio reflexo como para um velho amigo com o qual partilha uma
certeza. Quantos se seguirão até que eles compreendam, perguntou-lhe? Nenhuma
resposta. Como sempre.
Cambaleou até à tasca mais próxima. É uma imperial, filho da
puta. O empregado já habituado ao temperamento de Fábio, serviu-lhe uma
imperial, fresca. Riu-se e deu uma palmada nas costas do seu cliente. Como é
que anda a tua mãe, meu cabrão, há quanto tempo não a visitas? Fábio cuspiu-lhe
na cara com um só olhar, reclinou a cabeça para engolir a cerveja num só trago
e prosseguiu o seu caminho pela noite fora.
Continuou bebendo pela noite fora, seguindo o seu habitual
roteiro de bares e tabernas. Silencioso, serpenteou por entre as multidões
colhendo mistério e repúdio nas suas faces. No penúltimo bar, foi abordado por
uma mulher cuja idade não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos. Passadas
duas horas, fodeu-a por trás na casa de banho do bar. A sua mão ainda guardava
alguns cabelos pretos, a outra guardando ainda o suor das nádegas. Parou numa
viela secundária, dois amigos passavam. Empunhou uma faca e degolou o primeiro.
O segundo ficou a olhar aterrorizado para Fábio, o total inesperado da situação
colhido do absoluto absurdo fazia o tremer de medo. Como o caos poderia ser
aleatório e sádico. Justiça reclamou. Mas cedo a sua sede da mesma findou
porque Fábio caminhava agora na sua direcção. Fábio segurou-o pelos colarinhos
e encostou-lhe a faca ao pescoço. Viu o desespero nos olhos da sua vítima. Por uma
vez sentiu-se compreendido. A sua solidão tinha terminado. Beijou-o na boca e partiu.
Saciado.
sábado, 14 de julho de 2012
Marilú
Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos
espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida.
Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de
tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se
itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na
sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas
dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido
de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um
primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo
reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo.
Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser
a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho
reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo.
Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa,
delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam, já toda a sala é uma caverna onde a identidade
do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam
e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o
seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de
barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a
destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as
fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de
pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi
alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então
finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma
mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.
Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala
está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os
seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica
mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos
tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são
intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o
contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as
outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda.
Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o
inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada
e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se
os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos,
meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados,
adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um
pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo
discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados,
respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.
Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de
si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto
voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer
chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália.
Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho
engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato.
Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo
caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar,
também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas
metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas
os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados.
Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores,
escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.
Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).
Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu
catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo para de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.
Lira
Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos
espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida.
Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de
tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se
itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na
sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas
dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido
de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um
primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo
reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo.
Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser
a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho
reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo.
Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa,
delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam, já toda a sala é uma caverna onde a identidade
do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam
e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o
seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de
barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a
destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as
fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de
pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi
alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então
finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma
mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.
Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala
está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os
seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica
mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos
tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são
intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o
contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as
outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda.
Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o
inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada
e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se
os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos,
meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados,
adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um
pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo
discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados,
respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.
Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de
si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto
voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer
chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália.
Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho
engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato.
Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo
caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar,
também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas
metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas
os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados.
Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores,
escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.
Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).
Levou-lhe muito tempo ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o
António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a
ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um
desligar imediato do telefone na cara.
Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu
catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo parar de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.
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