segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

holy cancer

The soul started climbing the stairs of emancipation
Wheel spinning over the rooted and timeless routine
Way far from the haunted fields of meat
Finding suicide in the interpenetration of hope and lust

Let us enter the temple of nobody’s land
Where the rivers cry for their beloved mistress
And we, also abandoned children from love,
We decide to march through the last gate

With blinded eyes and grotesque impulses inside our hearts
We crawl like bastard snakes
In the end origin of all the punishment
For those who decided to taste poems with their tongues

Then I stepped into an avalanche
It almost killed my soul
I was drenched in the basements of my anger
Wondering who to kill after the horizon had been defeated

There were innocents wondering around
The forsaken blood of a broken star
And the peregrines kissing the floor
Wanted to rebuild it by worshipping their path to the sheltering sky

And still there was no answer to the voices inside our minds
For which normativity should we stand for
To which beauty should we bow
And to whom should we offer our discipline

Pure willingness to use our hands
For no purpose beside firing to the moon
The harvest tale that was widely shut
By the contemplation of the opened fruit

But the liquor couldn’t fulfil the anger
Neither the open space between ourselves
So the snow kept covering my body
Holy cancer, waited liberty, visceral freedom.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vítor

Ele levantou os olhos em direcção de Dália e disse: estou estéril. O primeiro intuito da mulher foi tocar-lhe o pénis e provar a verdade dessa confissão, mas cedo percebeu que Vítor não estava a falar da sua genitália. Tremia nas suas mãos um frenesim endiabrado, o seu olhar lançava pequenos fogachos de dor, de músculos convulsando espasmos e de boca dançando como um cocaínado pela face, Vítor reiterou: estou estéril. As suas pernas também tremeram, os seus braços caíram inertes sobre a cama, tentou levantar uma mão, depois a outra, mas nada, apenas o olhar sarcástico e acutilante da caneta fugindo como um cavalo selvagem pelo campo. Era malicioso esse olhar, tinha em si uma conjunção simétrica de desprezo, vingança e nojo, Vítor percebeu que jamais a caneta queria ter sido usada para o intuito dos seus versos, mas esperou dela outra consideração, outra solidariedade, porque na mais pura das verdades, nem Vítor queria ter sido usado para usar uma caneta.
Não raras vezes enquanto escrevia deparava-se com a obscenidade que estava a cometer, olhava assustado para si próprio no espelho: que monstro é este que estou criando? Que obsceno acto de cópula e reprodução tem a pornografia dos gestos que esboço sobre este papel? Os seus amigos invejavam-lhe a sua capacidade de catarse pela poesia, diziam que essa seria uma forma nobre de se livrar dos seus tormentos. Mas Vítor, sempre cativo, escravo e penitente, nunca compreendeu muito bem o que era isso da catarse, nem alguma vez percebeu de todo o que era isso da liberdade na escrita. Ele era escritor por obrigação, por imperativo, por mando, Vítor um mero e pobre seguidor, de rastos famigerados repelctos de sede, da voz que lhe segredava por dentro do corpo.
Que voz é essa, perguntava inúmeras vezes. Um dia tentou descortina-la, desembrulha-la, mostrar ao mundo como ela era, chamou Dália sua namorada e disse: Meu amor olha o que eu tenho dentro de mim! Mas mal ele se preparava para evocar o que lhe dizia a voz calou-se, ele esperou mais uns breves momentos mas nada, absolutamente nada, ficava expectante boquiaberto sem um único fonema lhe ser consentido. Depois, esperançoso, foi à gaveta da memória procurando por alguma gravação da voz. Nada. Mais uma vez nada. Todos os registos haviam sido destruídos, ele esgravatava e escarafunchava mas não encontrava nem vivalma, alguém tinha chegado antes dele. Fez uma promessa: da próxima vez que ouvir essa voz, vou escreve-la. E nesse exacto momento a voz reapareceu ditando-lhe um romance do início ao fim. Vítor ficou quatro dias sem comer e beber, dedicado inteiramente ao seu hercúleo trabalho, riu-se alto como Fausto, regozijou-se sarcástico como Bocage, até que a voz lhe disse: obrigado, era para isto que eu te queria, adeus. Desapareceu, Vítor percebeu como tinha sido enganado e que o seu intuito de desvendar essa estranha voz tinha sido em vão, na verdade, tinha apenas feito o que ela queria.
Continuou várias vezes súbdito da mesma, poderia estar na cama com a sua namorada, dando umas linhas de coca com os amigos, jogando xadrez com seu avô, que bastava a voz aparecer para ele largar tudo e agarrar-se ao seu caderno. Quando renegava às directrizes da sua proxeneta ela era intolerável, primeiro esmagava-lhe o ego com todas as revelações e humilhações possíveis e uma vez destruído o ego possuía-o enorme e interminável inquietação, fazia-se de tremores, suores, gemidos sorrateiros de dor. A cada momento, essa ânsia ia crescendo, começando pelos vómitos, pelos gritos e quando Vítor se dava conta, já os seus pulsos banhavam de sangue uma faca.
E a caneta, a caneta sabia disso tudo, não era justo o olhar que lhe retribuirá, Vítor estava tão encarcerado quanto ela. Nessa solitária prisão, perdeu anos de vida, os seus cabelos volveram-se brancos, os seus dentes foram se evanescendo, os seus olhos ganhando tonalidades avermelhadas, a sua barba crescendo floresta inóspita e muitos piolhos dançando por todo lado. Depois de completamente sugada a sua vida e jovialidade, sentiu-se subitamente abandonado. Gritou uma terceira vez: estou estéril. Dália assustou-se, cedo percebeu que ele estaria perto de mais uma das suas crises, foi buscar água e deu-lhe a beber na boca, Vítor não estava bem e desta vez não era como as outras, ela sabia-o. Primeiro foi-se a força nos braços, depois o corpo começou a tremer propulsionado pelas pernas, o coração acelerou num ritmo frenético. Dália percebeu que era provação da voz, porventura esta quereria soltar-se mas não conseguia devido a casmurrice do Vítor. Escreve Vítor, por favor, escreve, já sabes que tens de escrever quando é assim, disse-lhe, mas Vítor disse-lhe que não, não valia a pena, os seus braços não se mexiam. Virou os olhos para dentro e disse à voz, o que queres de mim? Não te chega tudo o que te dei? As obras que fecundei? Os momentos que martirizei? Mas a raiva não o levava a lado nenhum. A convulsão aumentava de tom, a agonia alastrava-se por todo o corpo e da sua boca já jorravam jactos de vómito por todo lado, então que gritou, fura-me, fura-me que ela quer sair. Dália pegou na faca mas era incapaz de furar o seu mais querido. FURA-ME CARALHO, FURA-ME JÁ. Dália tremia. FURA ME SUA PUTA NÂO PERCEBES QUE PRECISO QUE ME FURES CARALHO. Dália continuava hesitante. COMI A PUTA DA TUA IRMÃ NO NATAL, MENTI-TE SUA CABRA. E aí tomada por loucura momentânea, Dália começou a esburaca-lo com a sua faca. Na cara de Vítor nunca houvera tamanho alivio e felicidade, agradeceu a Deus ter-se lembrado daquela mentira e morreu em paz.
E nesse exacto momento, uma voz iluminou esta história no silêncio do meu corpo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Fábio

Sentado a mirar o tecto do seu quarto, Fábio viu o fumo a contorcer-se no ar que os separava. Fumou o maço todo seguido, sem interrupções, como se esforçasse por pregar nas suas entranhas a sua alma crucifixada. O fumo do cigarro foi visitando o seu interior e o seu corpo sentiu-se como uma puta em noite de serviço. Visitada inúmeras vezes por algum corpo estranho, a sua vagina árida não conseguia parar de torcer de dor, suculenta, fria, ácida, a cada investida que o falo externo intentava. Essa mesma dor, depois escorrendo para a cama, para os lençóis, encrostando-se, fazendo-se nódoa, primeiro vermelha, depois roxa quase negra, aguardando no dia seguinte ser incógnita quando revelada pelo primeiro raio surgido da persiana. Porque fiz eu isto? Lava a cara sobre a pia, olha-se de novo, a sua face parece-lhe ternamente familiar, vagamente quotidiana, só sua tez mudou, a cor sobre sumiu-se, as rugas encrostaram-se, os traços cadaverizaram-se, os lábios secos como passas.
Mas só amanhã. Uma vez findado o maço de tabaco e os sempre habituais trinta minutos de solidão fitando o tecto do seu quarto, Fábio levantou-se e olhou-se ao espelho. A vida perpetuamente corrosiva e corroída pareceu-lhe subitamente inteligível, uma certeza inalienável pulsou-lhe nas veias. Riu-se para o seu próprio reflexo como para um velho amigo com o qual partilha uma certeza. Quantos se seguirão até que eles compreendam, perguntou-lhe? Nenhuma resposta. Como sempre.
Cambaleou até à tasca mais próxima. É uma imperial, filho da puta. O empregado já habituado ao temperamento de Fábio, serviu-lhe uma imperial, fresca. Riu-se e deu uma palmada nas costas do seu cliente. Como é que anda a tua mãe, meu cabrão, há quanto tempo não a visitas? Fábio cuspiu-lhe na cara com um só olhar, reclinou a cabeça para engolir a cerveja num só trago e prosseguiu o seu caminho pela noite fora.

Continuou bebendo pela noite fora, seguindo o seu habitual roteiro de bares e tabernas. Silencioso, serpenteou por entre as multidões colhendo mistério e repúdio nas suas faces. No penúltimo bar, foi abordado por uma mulher cuja idade não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos. Passadas duas horas, fodeu-a por trás na casa de banho do bar. A sua mão ainda guardava alguns cabelos pretos, a outra guardando ainda o suor das nádegas. Parou numa viela secundária, dois amigos passavam. Empunhou uma faca e degolou o primeiro. O segundo ficou a olhar aterrorizado para Fábio, o total inesperado da situação colhido do absoluto absurdo fazia o tremer de medo. Como o caos poderia ser aleatório e sádico. Justiça reclamou. Mas cedo a sua sede da mesma findou porque Fábio caminhava agora na sua direcção. Fábio segurou-o pelos colarinhos e encostou-lhe a faca ao pescoço. Viu o desespero nos olhos da sua vítima. Por uma vez sentiu-se compreendido. A sua solidão tinha terminado. Beijou-o na boca e partiu. Saciado.

sábado, 14 de julho de 2012

Marilú


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo para de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.

Lira


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo parar de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Joana II


Os seus olhos acenderam-se. Um grande e vasto incêndio. O chiar das roldanas do comboio levanta-lhe o cabelo: solavanco, após solavanco, parecia haver um desrespeito por aquele momento. Pedir-se-ia silêncio, um arrastar lento como um golpe de asa, subtil, leve, enquanto via lentamente o espaço a cravar-se entre os dois. Joana debruçou-se na janela e tentou entre as oscilações da carruagem, obter a mais recta vista sobre a sua aldeia.
Há um magnetismo que só o fogo tem. São as suas cores, vividas, preenchidas, perfumadas, gordurosas. Um incrível espectáculo para os seus olhos que o bebiam sofregamente como se a sua falta os afogasse. Escondido entre os seus pensamentos, havia o desejo que o pequeno incêndio miniatura desenhado por entre as suas pestanas pudesse crescer. Crescer tanto que lhe acendesse o corpo, que lhe envolvesse o corpo, que a possuísse horas sem fim até ficar domada. Poder sentir esse ardor, esse calor, essa raiva, essa febre, toda ela consumindo-a, toda ela sendo consumida e consumada.
Preenchida. Sobretudo preenchida.
O incêndio vai-se afastando. Por entre o cântico crepitante das chamas, começa a ouvir os sons das pessoas gritando em pânico. Dir-se-ia agora triste, com uma lágrima escorrendo no canto do olho. A minha aldeia, soluçava, a minha pobre aldeia. Então despertou, olhou à sua volta e teve a noção parcial de quanto tempo tinha passado a observar o maravilhoso espectáculo do fogo. Esqueceu-se por completo que era a sua aldeia, com os seus entes queridos, com os seus espaços comuns, com os seus lugares a arder.
Ficou tempos olhando para si no espelho, sentindo nojo por esse monstro que se lhe tinha apoderado do corpo. Pegou numa faca, olhou para a sua perna e pensou ‘não voltarás a venerar o fogo’. Enquanto desenhava as letras, a dor excitava-a, sentia-se a ser rasgada como da primeira vez. A dor que ela julgara libertação, a dor que julgara nova porta, a dor que fechara porta ao fogo.
Depois de inscrever o seu número de presidiária na perna julgou poder ser feliz na sua catividade. Tapou as janelas da sua cela. Descobriu livros. Passou tempos infindáveis a ler tratados morais. Aprendeu comentários inteligentes e eloquentes sobre a loucura ocorrida em Sodoma e Gomorra. Quem a visse, nem conseguiria descobrir a sua origem.
Mas uma noite, quando a mais pura lua se erguia entre as nuvens, uma luz pálida esbatia-se-lhe pelo corpo todo nu. Entranhou-se-lhe na carne, perscrutou as barreiras, correu entre as sentinelas do costume e da civilização. Deslizou como uma serpente entre as suas antecâmaras e libertou a fera.
Uma vez reacordada, pediu a noite para se fazer véu, mais que véu passagem subterrânea até ao fogo. Aproximou-se tanto dele que já gotas fartas de suor escorriam por entre o seu corpo. Seus olhos secos mas vivos, seu nariz entupido pelo fumo, seus pés sujos de cinzas, todo o seu corpo eram papilas gustativas extasiando-se e gritando elegias ao prazer. A sua pele pálida e morta redescobriu alimento e comendo o carvão do ar, foi enegrecendo ganhando cada vez mais a cor da própria noite. Assim, abria os braços, sentindo o calor, a cor, o carvão, o cheiro a preenche-la, a liberta-la esquecendo-se por completo de tudo aquilo o que tinha aprendido nos livros da prisão, que era a sua aldeia que ardia, que eram inocentes as vozes que as chamas calavam, que era pecado venerar o fogo.
Do alto da minha esterilidade disse-lhe: Acabarás como uma estátua de sal, pobre mulher de ló. Então, virou o olhar para mim e cravou-me no peito como uma estaca o meu próprio vazio. Insuportavelmente asfixiando-me.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Joana



Cada parte do seu corpo que tocava, evocava nela um suspiro diferente. Gradativamente diferente. O suspiro saía quente, vaporoso por causa do frio inverno que era o seu corpo de mármore. A desistência sofrida, saía como a fruta consente o sumo, o primeiro precoce e ingénuo sumo, com a estridente faca a despi-la. Os homens quando partem para essa guerra levam consigo todas as facas que colheram no caminho, não há tempo para desastear, desapertar, para astúcia ou argúcia, apenas há a vil vontade de lapidar com a faca, apenas há a obrigatoriedade básica e compulsiva, a directiva que arde nas veias como uma inscrição feita que evoca suores frios e medo de um chicote. São gritos, essas cicatrizes, longas e concâvas, fundas a sangue vivo,  feitas por esse chicote, e a sua acumulação é o sinal do tempo, que passa.
O suspiro gradativamente alternava entre os vários tons que no ar ganhava, ou seja, com as diferentes partes que os meus dedos premiam. Julgava-se um piano talvez, mas certamente um xilofone de chuva a cair num charco. Um charco onde nem a minha cara se via. Mirei-o um sem número de vezes de frente, olhos nos olhos, e os seus olhos negros, na sua voraz ânsia de tudo consumir, apenas me devolviam vazio, como um espelho de um interrogatório de uma esquadra norte-americana.
Perguntei-lhe para onde tinha ido a minha imagem, ou o que restava dela agora por Joana consumida. Ela pegou-me na mão, encheu-me a com o seu peito e pediu me para a penetrar.