sexta-feira, 15 de junho de 2012

Joana II


Os seus olhos acenderam-se. Um grande e vasto incêndio. O chiar das roldanas do comboio levanta-lhe o cabelo: solavanco, após solavanco, parecia haver um desrespeito por aquele momento. Pedir-se-ia silêncio, um arrastar lento como um golpe de asa, subtil, leve, enquanto via lentamente o espaço a cravar-se entre os dois. Joana debruçou-se na janela e tentou entre as oscilações da carruagem, obter a mais recta vista sobre a sua aldeia.
Há um magnetismo que só o fogo tem. São as suas cores, vividas, preenchidas, perfumadas, gordurosas. Um incrível espectáculo para os seus olhos que o bebiam sofregamente como se a sua falta os afogasse. Escondido entre os seus pensamentos, havia o desejo que o pequeno incêndio miniatura desenhado por entre as suas pestanas pudesse crescer. Crescer tanto que lhe acendesse o corpo, que lhe envolvesse o corpo, que a possuísse horas sem fim até ficar domada. Poder sentir esse ardor, esse calor, essa raiva, essa febre, toda ela consumindo-a, toda ela sendo consumida e consumada.
Preenchida. Sobretudo preenchida.
O incêndio vai-se afastando. Por entre o cântico crepitante das chamas, começa a ouvir os sons das pessoas gritando em pânico. Dir-se-ia agora triste, com uma lágrima escorrendo no canto do olho. A minha aldeia, soluçava, a minha pobre aldeia. Então despertou, olhou à sua volta e teve a noção parcial de quanto tempo tinha passado a observar o maravilhoso espectáculo do fogo. Esqueceu-se por completo que era a sua aldeia, com os seus entes queridos, com os seus espaços comuns, com os seus lugares a arder.
Ficou tempos olhando para si no espelho, sentindo nojo por esse monstro que se lhe tinha apoderado do corpo. Pegou numa faca, olhou para a sua perna e pensou ‘não voltarás a venerar o fogo’. Enquanto desenhava as letras, a dor excitava-a, sentia-se a ser rasgada como da primeira vez. A dor que ela julgara libertação, a dor que julgara nova porta, a dor que fechara porta ao fogo.
Depois de inscrever o seu número de presidiária na perna julgou poder ser feliz na sua catividade. Tapou as janelas da sua cela. Descobriu livros. Passou tempos infindáveis a ler tratados morais. Aprendeu comentários inteligentes e eloquentes sobre a loucura ocorrida em Sodoma e Gomorra. Quem a visse, nem conseguiria descobrir a sua origem.
Mas uma noite, quando a mais pura lua se erguia entre as nuvens, uma luz pálida esbatia-se-lhe pelo corpo todo nu. Entranhou-se-lhe na carne, perscrutou as barreiras, correu entre as sentinelas do costume e da civilização. Deslizou como uma serpente entre as suas antecâmaras e libertou a fera.
Uma vez reacordada, pediu a noite para se fazer véu, mais que véu passagem subterrânea até ao fogo. Aproximou-se tanto dele que já gotas fartas de suor escorriam por entre o seu corpo. Seus olhos secos mas vivos, seu nariz entupido pelo fumo, seus pés sujos de cinzas, todo o seu corpo eram papilas gustativas extasiando-se e gritando elegias ao prazer. A sua pele pálida e morta redescobriu alimento e comendo o carvão do ar, foi enegrecendo ganhando cada vez mais a cor da própria noite. Assim, abria os braços, sentindo o calor, a cor, o carvão, o cheiro a preenche-la, a liberta-la esquecendo-se por completo de tudo aquilo o que tinha aprendido nos livros da prisão, que era a sua aldeia que ardia, que eram inocentes as vozes que as chamas calavam, que era pecado venerar o fogo.
Do alto da minha esterilidade disse-lhe: Acabarás como uma estátua de sal, pobre mulher de ló. Então, virou o olhar para mim e cravou-me no peito como uma estaca o meu próprio vazio. Insuportavelmente asfixiando-me.

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