sexta-feira, 4 de maio de 2012

Rita


Quando entrei no restaurante o seu olhar apagou-se. Fitava-me portanto. Com seus grandes e contundentes olhos cristalinos como o azul. Exageradamente azuis, na quantidade portanto necessária para convencer um apreciador nato de morenas. Usava uma camisa branca cortada por riscas azul-escuras verticais, parte tapada por um blazer negro. Em cada peça de roupa, notava-se subtilmente, pela qualidade do tecido, pelo esmerar do corte, uma certa aura burguesinha que tanto haveria de fazer suspirar Cesário Verde. Era de fazer suspirar qualquer um: as calças de azul em todo igual ao do casaco subiam levemente pelo cruzar das pernas, deixando entre o cinzento do salto alto escapar, exoticamente provocador, tão pele morena para tão cinzenta época do ano. Estava frio, era uma primavera chuvosa, ainda assim, Rita, trazia no seu corpo a cor da praia. Ou de uma praia. Uma praia feita para se ouvir o vento.

Tantas foram as vezes em que eu caíra nesse mar de leite, branco, níveo. Adormeceria ‘tanto, tão perto, tão real’, nesse universo deixando-me afogar. Sorrindo. Outras mulheres têm a beleza fatal, a beleza que se nos impõe pela força, que nos range a vontade de as agarrar. Já Rita não possui nada desta beleza, faz-nos querer aconchegar, espraiar, deitar, aguardar por mais nada ver, fechar os olhos.
Tantas foram essas as vezes em que passou por mim sem saber o meu nome, sem nunca mais ser na sua vida que uma sombra. Nem talvez uma sombra, porque com certeza de uma sombra ela terá uma imagem, um sentimento por ela. E todas essas vezes, quanto me senti impotente, estéril, resignado, envergonhado. Nunca lhe falei, nem tão pouco desta vez. Nem tão pouco lhe falarei.
Rita olhava para um aristocrata, seu companheiro de classe, com o habitual ar que as aristocratas olham para os seus companheiros de classe. Podem ser gordos, desinteressantes, estúpidos, primários, machistas, toda a aristocrata avalia o seu parceiro por outros motivos. Grau de penetração no meio, cargo dentro da hierarquia, presença em determinados meios, conhecimentos noutros, nome de família, tecido e corte da roupa. Ou apenas marca.

Mas os seus olhos estavam acesos, pareciam tentar antever na brutalidade das histórias de rugby do seu pretendente, a brutalidade com que este poderia, ou não, agarrar-lhe as ancas para a cavalgar. A não ser que estivesse realmente interessada em saber como é que este tinha reacções agressivas quando determinado jogador da equipa contrária o provocava. Não. Não poderia estar, os seus olhos estavam demasiado acesos para que fosse só mero interesse intelectual. Toda ela se ruborizava com a história.
Assim, quando entrei no restaurante o seu olhar apagou-se. Ofereceu-me um olhar de mero tédio, frete, náusea. Continuei andar sem perceber que era ela que me olhava. Depois reparei que ainda me fitava mas agora com um pouco mais de interesse. Algo a deliciava no facto de eu não ter reparado nela. Só então, quando me perguntei quem era a rapariga que não parava de me fitar, percebi que de Rita se tratava. Estanquei. Olhei para ela. Os seus olhos pareciam mais azuis e reluzentes que nunca, entre seus grandes e carnosos lábios, os seus caninos emergiam dando-lhe uma aspecto felino. Pressentiu como me dominava. Saboreou essa dominação. Não por sentir alguma espécie de atracção, a náusea inicial devia-se ao exacto facto de eu nunca a poder entreter. Eu não tenho histórias de rugby, e ela sabe disso. No entanto, na sua aristocracia burguesa havia geneticamente o gosto pelo mando, por se deitar numa rede com uma chibata a bater num escravo. Seminu.

Quando o seu pretendente me olhou na busca de encontrar o justo motivo para a distracção repentina de Rita, eu baixei a cabeça, prestei-lhe reverência como a um pobre filho de classe média se lhe pede. Não que concorde com essa genuflexão, mas isto dos hábitos entranha-se nos corpos. Olhou-me com o olhar de quem também sabia que eu não tinha histórias de rugby, ou que, pelo menos, sabia que Rita sabia que eu não sabia histórias de rugby. A dominação social dá-se por meios informais, por lógicas informais.
Ela devolveu-lhe de novo o olhar que perdera por instantes, dando-lhe a entender que se tinha apenas distraído. Talvez tenha mesmo. Ou talvez ainda guardasse na sua memória, como se de uma sobremesa melosa se dissolve-se no estomago, a minha cara de estúpido e pacóvio a olhar para ela. Verdade era que eu ainda guardava na minha incapacidade de devolver um olhar à altura do seu uma mágoa. Aliado ao facto de Rita poder ser a mulher mais desinteressante à face da terra, esta será sempre, a mais inexoravelmente terrível e humilhante definição, da condição de ser homem.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Meu menino

Meu menino que choras com o medo do escuro mas que a chama nos teus olhos seria de capaz de queimar o escuro. Vês no escuro não o escuro, mas a ausência de uma voz quente, de uma mão que te estenda e que te indique o caminho. Meu menino que choras pelo medo do mundo, esse lugar habitado por seres que te regem, que te dominam, esse lugar habitado por demónios, seres diabólicos que te espancam e maltratam. Quantos são os enviados do Diabo tão certos da sua moral, tão convictos das suas normas, tão rígidos nos seus horários que te ostracizam e segregam. Perdessem eles o tempo para te ouvir, para te conhecer, que o seu bom espírito, a existir, os obrigaria a perder todas as suas certezas, convicções e rigidezas.

Meu menino que sentes na própria pele as negras a crescerem e no próprio coração as mágoas a envergonharem-te, quero te dizer que é tua a minha pele e que é teu o meu coração, que sinto a tua dor como minha porque ela realmente o é. Vem por aqui, já não estás só, no meu amparo tens refúgio, sei que ainda ouves as vozes dos demónios lá fora à tua procura para te castigar, mas posso te garantir que na minha casa estás seguro.

Nem tu imaginas como é bonito ter te visto roubar um lanche da mercearia para dar a um menino pobre que viras na rua. Sei que também a tua barriga ronca de pouco comeres e como nem sempre a comida é em demasia, mas tu não estás sozinho e sabe-lo sem saber. No teu medo, perante as atrocidades canibalescas sentes-te indefeso e sem ninguém ao teu lado, mas quando olhas para o lado consegues horizontalizar a tua dor, comungar da mesma dor inviolável que penetra, embora de maneiras diferentes, em muitos outros meninos da tua idade. Ao invés do desprezo te consumir ao ponto de te tornar um novo demónio, tu só encontras força para reunir os teus irmãos todos contigo e lutar por uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais forte. No teu choro ouve-se revolta, ouve-se um grito contra uma sociedade opressora, uma sociedade que nem te protege a ti, pobre menino, das atrocidades que te fazem, nem dos outros tão ou mais pobres do que tu. A ti nunca te vi o mal nos olhos, mas apenas a força e radicalismo. Mas choras. Choras porque és uma criança. Mas nunca foste uma criança. Para ti a infância foi alguma coisa inventada pela hipocrisia dos adultos ou o que eu chamaria de ‘veleidade burguesa’. Nunca foste ingénuo. Nunca te deixaram sê-lo.

Disseram-me que aos seis anos saíste à rua para tentar pela primeira vez a revolução levando contigo apenas um mapa e umas luvas de boxe. Parece que passaram por ti uns adultos que gozaram contigo e acharam pitorescamente engraçado. Mas eu entendi-te e não achei graça nenhuma.

Meu menino que és tão franzino, tão pequeno, que os teus braços são tão frágeis e que o teu olhar é tão triste, sei que disse que choras por seres menino mas é mentira. Vem comigo, vou fazer de ti um novo adulto, um adulto que sabe como se mover no mundo dos adultos, mas que não perdeu a capacidade de chorar. Porque um dia, se eu não morrer antes disso, ainda transformarás as luvas de boxe numa flor, para a por no cabelo duma menina.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A arte de ser fascista

Ser fascista é ter um dos maiores prazeres que se pode encontrar, imaginem só o que não é a malícia sádica torneada com o mais belo licor apto a deliciar as papilas gustativas de quem sabe beber, em copos de cristal, o ódio proletário. Ah, como sabe bem olhar directamente para a parede e ver o quadro piramidal da organização societal, como é maravilhoso cruzar as pernas ajoelhando-se, pegar no terço, empunha-lo e ouvir no silêncio o vagar tremendo das ondas a esbaterem-se na praia, que mais não são os urros das gentes gritando, que mais não são do que os insultos que se ouve quando se vai na rua. Empunhar o terço como quem empunha uma espada, deixar as suas farpas ferir a pele para que o sangue o unte e ver no poço de sangue jorrado a própria cara, lavada. Ouvir a Pátria como se só se pode ouvir a Pátria, ouvir a Pátria entendendo a linguagem da Pátria, a linguagem que só se entende pelo receptor sensorial terço, e sabe-lo, com convicção também. Pobres daqueles que renegam o terço, pobres daqueles que sobre mim se esbatem por não possuírem um terço que os guie, por não ter um terço que nos possa unir. Longos vão o tempo em que cada português usava o seu, longos vão os tempos que eramos um enxame de setas de um só sentido, hoje a cruzada ficou vazia e os paladinos de outrora foram esquecidos. Hoje as massas vagueiam em nossa procura, perseguem-me nas ruas, nas vielas e no silêncio em busca de me verem nas mãos, nas mãos que fiscalizam quando alguém passa nas portadas da sua cidadela, as marcas de quem deixou as farpas do terço comungar no seu sangue. Neste mundo perdido, a arte de ser fascista é arte de ser louco, ser-se fascista é resignar a lutar, os cursos do tempo levaram a história para outros campos, por isso ser-se fascista é preservar o seu próprio quadrado, ter ainda no seu coração a lembrança de outros tempos, saber ser sádico, gostar das agressões de que é alvo, gostar das adulterações que fizeram à sua história, gostar das generalizações abusivas de que sofre, gostar de ver a competição esquerdófila com os seus narizes suínos a farejar para ser o primeiro a encontrar algum e gritar: fascista!. Oh loucos olhos que me deram a ver o que poucos vêem, a pequenez moral das pessoas, o seu lado grotesco e animal disfarçado de cordeiro anónimo, de pequena formiga esquecida entretida com o seu umbigo, e que só se revela o seu lado demoníaco e diabólico quando confrontada com o fascista, aí a criatura pequena e adorável, mansa e serena, moderada e democrática aparece bruta, feroz, impetuosa e pronta a matar. Deus agradeça aos fascistas, por ao menos conseguirem ressuscitar a virilidade que parece esquecida em todas as outras instâncias. Acordem massas! Acordem que o facho vem a caminho! Persigam o facho, gastem todo o vosso tempo atrás do facho, que o facho agradecerá sem dúvida a vossa preocupação, e não retaliará, não por não ser facho, que realmente o é, mas porque enquanto se preocupam em perseguir o facho o vosso próprio camarada vos enraba. E o facho ri-se, loucas as gargalhadas lúcidas, loucas as gargalhadas de quem já só vê no ódio dos infiéis o amor de Deus, de Deus a quem decidiu entregar a vida, e glosando, o verdadeiro fascista é movido por sentimentos de amor.

Não, mas deixem a Pátria ficar profanada por suínos, estúpidos, putas, crápulas, acéfalos, ignorantes, presunçosos, snobes, ambiciosos, judas que o facho é que é louco. Aliás até o próprio o admite.

Geraldo

Serpenteio como o vento entre as texturas físicas dos corpos que sobre a rua passam. Demoro-me a focar directamente num plano próximo, aumento a sua resolução. Estão tão próximo que quase julgo o seu tecido as minhas pálpebras. Há oscilações na cor, alguém tapa a luz, ouve-se vozes, as pessoas conversam. Ouço as suas vozes como o fundo de uma gruta ouve o lago. Repetem-se, interagem, repetindo-se, há um jogo próximo que repetem cada vez que uma nova personagem se lhes depara. Sento-me a observar os seus modos, as suas teatralidades, os seus gracejos, que repetem, são os novos modelos de uma publicidade qualquer, são os actores de uma grande peça encenada chamada de ‘a representação social e a apologia da felicidade’. As datas certas existe a obrigatoriedade de ser feliz, de estar eufórico, há como que uma papila gustativa social que quando devidamente estimulada vai ficando cada vez mais erógena, quanto mais alguém dá provas de histerismo, mais em seu redor as pessoas ficam propensas a participar desse histerismo e assim contribuem para o aumento geral, progressivo do histerismo. Há uma epopeia histérica, uma Ilíada, o som dos copos de cristal ecoa, a banda toca, há negrume no ar de fumo de charuto. As luzes do palco estão semicerradas, no entanto sobre a plateia, pequenos focos de luz surgem. As pessoas apressam-se em chegar a tempo de apanhar o foco, correm na esperança doida de ficar para a memória, de serem vistas em futuras ocasiões, de serem os mártires da apologia da felicidade, mas a verdade é que quando a terra acabar, nem um pouco de tempo alguém vai pensar em ir ver a tonelada de lixo informático que produziremos ao longo de muitos séculos. A lembrançazinha. O ridículo existencial de quem existe.

sábado, 15 de outubro de 2011

Maria

Morre apunhalada como César a minha Pátria nas minhas mãos. Esfaqueada por seus filhos, sangrando entre o desgosto dessa traição e o medo da morte. Abraço-me a ela, choro fervorosamente com ela, enquanto o seu sangue me unta e se funde nas minhas lágrimas. Neste um rio só de sangue e lágrimas navegam naus transportando para a imigração tudo o que sonhámos os dois. Todas as promessas, todas as ideias que cerramos em divisas com que cunhamos o nosso corpo. Todas as aspirações, todos os sonhos que diletantes especulámos em noites frias ao som das ondas. Houve uma noite inclusive, que tivemos a nítida sensação de ver embater contra a costa uma onda vinda directamente de uma Nova Índia e sentimos sobre a lava que caíra no nosso corpo um espírito cunhando o seu nome com uma faca na nossa carne. Sonhámos um dia correr nus, mostrar ao mundo aquilo que somos, as divisas que somos. Existir é um manifesto, é um grito de ipiranga de um conjunto de mandatos interiores, quem não os tem não existe. Quem não os tem são os ‘homens-consensuais’, os ‘zés-ninguém’ de William Reich, os homens a quem não lhes conhece uma ideia, uma direcção a não ser a ganância do poder. Andam por aí, circulam como vermes por entre as frinchas do chão, por entre as paredes dos edifícios. Pertencem todos a um exército direccionado por alguma figura obscura que na sombra os dirige atirando-lhes migalhas. Em terra de cegos, quem tem olho é rei. Ela ri-se, ri-se da figura ridícula que eles fazem, todo desespero por que lutam por meras migalhas. Mas eles sabem que ela não gosta que tenham ideias e que pensem, por isso trocam palmadas nas costas um do outro e dizem ‘tu serás o próximo a subir, tu foste muito consensual e moderado’, num gesto de camaradagem que logo dissolvem quando se vem ultrapassados acusando o outro de ser radical, controverso, extremista. A Pátria que os adoptou, que os educou, que lhes deu a língua e por conseguinte a civilização, que julgou neles ver o seu sustentáculo e por conseguinte as suas armas, hoje viu-se apunhalada, apunhalada por todos por isso por ninguém, caída e desamparada, agonizada nas minhas mãos.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sílvio

Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, agitam-se e amam-se em espiral, mas numa espiral íntima, próxima, quase que se raspam, que se apagam, quase que avançam um, sobre outro, invadindo em tangente o espaço próximo do outro, e, ao invadir, rouba certa parte da outro, rouba certa parte da cor do outro, assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se, perdendo vertiginosamente a sua cor inicial, anteriormente antagónica, mas encontrando uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm. Quando as duas cabeças ovais embateram uma na outra, houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças, embatem uns contra os outros, esbatem uns contra os outros, assemelham-se a glóbulos vermelhos por veias, assemelham-se a um organismo a ganhar vida. Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos, uma seiva transparente me invade a superfície do corpo, finalmente consigo abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços, consigo ver claramente os contornos da rua que o vi caminhar e que antes me eram completamente invisíveis. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma indiferença estúpida perante o jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão. Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheio de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Neuza

Se tantas mulheres feias reproduzem e dão outras mulheres também elas feias mas ainda com capacidade de reproduziram, porque é que Deus se deu ao capricho de ir roubar ao mais negro óleo do crepúsculo para te picar como quem desenha em tinta-da-china o contorno dos teus olhos, fazendo uma cadência cada vez mais densa e escura à medida que se aproxima do mar fino de uma bruma de marfim de que são feitos. Passaria sentado sobre essa mesma margem, baloiçando os meus pés nessa paz de leite, tempos sem fim anotando todas as histórias que habitam na ilha em frente de mim. Consigo ver essa gueixa frígida que se deixa possuir por um homem corpulento, a forma como o sangue escorre pelos seus lábios vaginais frio e ácido, a transformar-se num canto que expele com o fumo do seu tabaco quando tenta tirar do seu corpo o cheiro imundo da besta que saíra deixando a nota boiando sobre esse rio feito canto feito história. Vejo simplesmente o olhar desafiante com que um heroinómano enfrenta como um toureiro a morte, o seu jeito provocador enquanto se deixa invadir pela morte saboreando cada pequeno resíduo de uma tampa de um iogurte como se risse na cara da morte, lhe mijasse em cima num mijo negro de prazer orgástico da droga. Ouço a história de todas as tuas pequenas bonecas de menina, a história de como cada uma te foi levada para parte incerta num terreno mítico vulgarizado por memória. Contas-me como cada essa pequena boneca são parte integrante do que és hoje, como tens os braços de uma, os ombros de outra, como te construíste enquanto mulher sem nunca perder a tua feminidade e a tua esperança com que lhes cantavas. Contas-me também como encontraste os homens vulgares, cinzentos, esterilizados emocionalmente por uma sociedade que os ensina a serem como bestas para copular por imperativo fisiológico. O amor, perguntas-me, onde está o sentimento? Será a revolução sexual a reacção sexual? Será a banalização do sexo o seu maior retrocesso? Assim descubro o valor do íntimo, nesse meu sonho intimo que descobri a escrever meia página sobre os teus olhos.
Assim brilha uma névoa no teu corpo, os raios de sol esbatem sobre teu corpo dando lhe os laranjas-fogo de um por do sol espelhado sobre o mar. Soltam pequenos tentáculos, rios ainda mais finos de luz provenientes do lugar onde se esbate a luz, a luz, no teu corpo, é como um animal vivo, um ser pernicioso que se expande enquanto sussurra cânticos, ouço o ‘Im Anfange schuf Gott Himmel und Erde’ exactamente como Haydn ouviu na sua cabeça quando pensava na sua obra. Sinto o amor impossível de Camões por sua cativa ou a mórbida frase de Cesariny ‘em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro’. Em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro, sigo pelo sinuoso caminho pedereste, absorvo-me cada vez mais em todo o seu detalhe e sinto que te perco, sinto que mais não te vejo, que perdi o caminho ao esmorecer-me bacoco por um mero passarinho caído do ninho. Como não me poderia perder por todo o mais ínfimo recanto também? Solto a resolução, tiro o binóculo, vejo te toda por inteiro de novo. Miro-te com o medo de quem olha Cleópatra por isso fujo. Mergulho de novo nesses caminhos sinuosos no meio dessa floresta de trigo, procuro-te, procuro as tuas histórias, procuro histórias, procuro pessoas, procuro personagens, procuro paisagens e paisagens mas só vejo trigo e trigo e trigo. È verdade que é um espanto ver a luz, mais uma vez, a ser vento, a curvar toda a ceara de uma vez e que é um delírio correr campos e campos sem fim apenas com a mão estendida passando a mão hirta pelo trigo. Assim descobri o que era íntimo, o integrante físico do íntimo, o espaço vital do teu íntimo quando julguei artista narciso sentir-me tocando a tua íris no papel.