sábado, 15 de outubro de 2011
Maria
Morre apunhalada como César a minha Pátria nas minhas mãos. Esfaqueada por seus filhos, sangrando entre o desgosto dessa traição e o medo da morte. Abraço-me a ela, choro fervorosamente com ela, enquanto o seu sangue me unta e se funde nas minhas lágrimas. Neste um rio só de sangue e lágrimas navegam naus transportando para a imigração tudo o que sonhámos os dois. Todas as promessas, todas as ideias que cerramos em divisas com que cunhamos o nosso corpo. Todas as aspirações, todos os sonhos que diletantes especulámos em noites frias ao som das ondas. Houve uma noite inclusive, que tivemos a nítida sensação de ver embater contra a costa uma onda vinda directamente de uma Nova Índia e sentimos sobre a lava que caíra no nosso corpo um espírito cunhando o seu nome com uma faca na nossa carne. Sonhámos um dia correr nus, mostrar ao mundo aquilo que somos, as divisas que somos. Existir é um manifesto, é um grito de ipiranga de um conjunto de mandatos interiores, quem não os tem não existe. Quem não os tem são os ‘homens-consensuais’, os ‘zés-ninguém’ de William Reich, os homens a quem não lhes conhece uma ideia, uma direcção a não ser a ganância do poder. Andam por aí, circulam como vermes por entre as frinchas do chão, por entre as paredes dos edifícios. Pertencem todos a um exército direccionado por alguma figura obscura que na sombra os dirige atirando-lhes migalhas. Em terra de cegos, quem tem olho é rei. Ela ri-se, ri-se da figura ridícula que eles fazem, todo desespero por que lutam por meras migalhas. Mas eles sabem que ela não gosta que tenham ideias e que pensem, por isso trocam palmadas nas costas um do outro e dizem ‘tu serás o próximo a subir, tu foste muito consensual e moderado’, num gesto de camaradagem que logo dissolvem quando se vem ultrapassados acusando o outro de ser radical, controverso, extremista. A Pátria que os adoptou, que os educou, que lhes deu a língua e por conseguinte a civilização, que julgou neles ver o seu sustentáculo e por conseguinte as suas armas, hoje viu-se apunhalada, apunhalada por todos por isso por ninguém, caída e desamparada, agonizada nas minhas mãos.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Sílvio
Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, agitam-se e amam-se em espiral, mas numa espiral íntima, próxima, quase que se raspam, que se apagam, quase que avançam um, sobre outro, invadindo em tangente o espaço próximo do outro, e, ao invadir, rouba certa parte da outro, rouba certa parte da cor do outro, assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se, perdendo vertiginosamente a sua cor inicial, anteriormente antagónica, mas encontrando uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm. Quando as duas cabeças ovais embateram uma na outra, houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças, embatem uns contra os outros, esbatem uns contra os outros, assemelham-se a glóbulos vermelhos por veias, assemelham-se a um organismo a ganhar vida. Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos, uma seiva transparente me invade a superfície do corpo, finalmente consigo abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços, consigo ver claramente os contornos da rua que o vi caminhar e que antes me eram completamente invisíveis. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma indiferença estúpida perante o jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão. Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheio de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças, embatem uns contra os outros, esbatem uns contra os outros, assemelham-se a glóbulos vermelhos por veias, assemelham-se a um organismo a ganhar vida. Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos, uma seiva transparente me invade a superfície do corpo, finalmente consigo abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços, consigo ver claramente os contornos da rua que o vi caminhar e que antes me eram completamente invisíveis. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma indiferença estúpida perante o jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão. Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheio de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Neuza
Se tantas mulheres feias reproduzem e dão outras mulheres também elas feias mas ainda com capacidade de reproduziram, porque é que Deus se deu ao capricho de ir roubar ao mais negro óleo do crepúsculo para te picar como quem desenha em tinta-da-china o contorno dos teus olhos, fazendo uma cadência cada vez mais densa e escura à medida que se aproxima do mar fino de uma bruma de marfim de que são feitos. Passaria sentado sobre essa mesma margem, baloiçando os meus pés nessa paz de leite, tempos sem fim anotando todas as histórias que habitam na ilha em frente de mim. Consigo ver essa gueixa frígida que se deixa possuir por um homem corpulento, a forma como o sangue escorre pelos seus lábios vaginais frio e ácido, a transformar-se num canto que expele com o fumo do seu tabaco quando tenta tirar do seu corpo o cheiro imundo da besta que saíra deixando a nota boiando sobre esse rio feito canto feito história. Vejo simplesmente o olhar desafiante com que um heroinómano enfrenta como um toureiro a morte, o seu jeito provocador enquanto se deixa invadir pela morte saboreando cada pequeno resíduo de uma tampa de um iogurte como se risse na cara da morte, lhe mijasse em cima num mijo negro de prazer orgástico da droga. Ouço a história de todas as tuas pequenas bonecas de menina, a história de como cada uma te foi levada para parte incerta num terreno mítico vulgarizado por memória. Contas-me como cada essa pequena boneca são parte integrante do que és hoje, como tens os braços de uma, os ombros de outra, como te construíste enquanto mulher sem nunca perder a tua feminidade e a tua esperança com que lhes cantavas. Contas-me também como encontraste os homens vulgares, cinzentos, esterilizados emocionalmente por uma sociedade que os ensina a serem como bestas para copular por imperativo fisiológico. O amor, perguntas-me, onde está o sentimento? Será a revolução sexual a reacção sexual? Será a banalização do sexo o seu maior retrocesso? Assim descubro o valor do íntimo, nesse meu sonho intimo que descobri a escrever meia página sobre os teus olhos.
Assim brilha uma névoa no teu corpo, os raios de sol esbatem sobre teu corpo dando lhe os laranjas-fogo de um por do sol espelhado sobre o mar. Soltam pequenos tentáculos, rios ainda mais finos de luz provenientes do lugar onde se esbate a luz, a luz, no teu corpo, é como um animal vivo, um ser pernicioso que se expande enquanto sussurra cânticos, ouço o ‘Im Anfange schuf Gott Himmel und Erde’ exactamente como Haydn ouviu na sua cabeça quando pensava na sua obra. Sinto o amor impossível de Camões por sua cativa ou a mórbida frase de Cesariny ‘em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro’. Em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro, sigo pelo sinuoso caminho pedereste, absorvo-me cada vez mais em todo o seu detalhe e sinto que te perco, sinto que mais não te vejo, que perdi o caminho ao esmorecer-me bacoco por um mero passarinho caído do ninho. Como não me poderia perder por todo o mais ínfimo recanto também? Solto a resolução, tiro o binóculo, vejo te toda por inteiro de novo. Miro-te com o medo de quem olha Cleópatra por isso fujo. Mergulho de novo nesses caminhos sinuosos no meio dessa floresta de trigo, procuro-te, procuro as tuas histórias, procuro histórias, procuro pessoas, procuro personagens, procuro paisagens e paisagens mas só vejo trigo e trigo e trigo. È verdade que é um espanto ver a luz, mais uma vez, a ser vento, a curvar toda a ceara de uma vez e que é um delírio correr campos e campos sem fim apenas com a mão estendida passando a mão hirta pelo trigo. Assim descobri o que era íntimo, o integrante físico do íntimo, o espaço vital do teu íntimo quando julguei artista narciso sentir-me tocando a tua íris no papel.
Assim brilha uma névoa no teu corpo, os raios de sol esbatem sobre teu corpo dando lhe os laranjas-fogo de um por do sol espelhado sobre o mar. Soltam pequenos tentáculos, rios ainda mais finos de luz provenientes do lugar onde se esbate a luz, a luz, no teu corpo, é como um animal vivo, um ser pernicioso que se expande enquanto sussurra cânticos, ouço o ‘Im Anfange schuf Gott Himmel und Erde’ exactamente como Haydn ouviu na sua cabeça quando pensava na sua obra. Sinto o amor impossível de Camões por sua cativa ou a mórbida frase de Cesariny ‘em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro’. Em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro, sigo pelo sinuoso caminho pedereste, absorvo-me cada vez mais em todo o seu detalhe e sinto que te perco, sinto que mais não te vejo, que perdi o caminho ao esmorecer-me bacoco por um mero passarinho caído do ninho. Como não me poderia perder por todo o mais ínfimo recanto também? Solto a resolução, tiro o binóculo, vejo te toda por inteiro de novo. Miro-te com o medo de quem olha Cleópatra por isso fujo. Mergulho de novo nesses caminhos sinuosos no meio dessa floresta de trigo, procuro-te, procuro as tuas histórias, procuro histórias, procuro pessoas, procuro personagens, procuro paisagens e paisagens mas só vejo trigo e trigo e trigo. È verdade que é um espanto ver a luz, mais uma vez, a ser vento, a curvar toda a ceara de uma vez e que é um delírio correr campos e campos sem fim apenas com a mão estendida passando a mão hirta pelo trigo. Assim descobri o que era íntimo, o integrante físico do íntimo, o espaço vital do teu íntimo quando julguei artista narciso sentir-me tocando a tua íris no papel.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Tiago
A noite estala os dedos nas gotas de chuva que frita nas minhas janelas. Estala-os mais do que quem marca o compasso, estala os dedos como quem marca o tempo, como quem se fantasia de ampulheta. A ampulheta cortada a metade é um copo. É um copo a encher gota a gota, estalo a estalo, como uma mão que sobe fria entre as minhas saias palmo a palmo. A noite lambe os beiços, olhos hipnotizados como um pedófilo esfregaria as mãos se fosse uma formiga. Languidamente. Intensamente passa as mãos por entre as minhas cuecas brancas para sentir meus lábios, secos, rijos. Olho-a com o terror com que uma criança olha um pedófilo. Ela pega-me na mão e pousa-se sobre a sua barriga, sorri maternalmente ao ver me sentir o murro-grito do embrião. A besta. O anjo negro.
Encosto a minha cabeça no muro das lamentações, encosto-me as suas pedras, roço a minha cabeça nelas, beijo-as apaixonadamente, procuro inteirar-me delas quando levanto os olhos e vejo que estivera-me deliciando sobre o abdómen esculpido da besta. Acordo desse semi-sonho, dessa matrioska. Estou de frente para a noite que ainda me fita estudiosamente.
Encosto a minha cabeça no muro das lamentações, encosto-me as suas pedras, roço a minha cabeça nelas, beijo-as apaixonadamente, procuro inteirar-me delas quando levanto os olhos e vejo que estivera-me deliciando sobre o abdómen esculpido da besta. Acordo desse semi-sonho, dessa matrioska. Estou de frente para a noite que ainda me fita estudiosamente.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Inês- II
Seria talvez um sorriso de mona lisa ou talvez seria um sorriso redondamente interpretável. Enquanto conjurava o texto precedente na minha cabeça julguei ser exactamente esse o momento crítico que pretendia retratar. Se o texto pretendia ser um texto sobre o amor então porque não colocar a questão? Mas colocar a questão de forma mascarada e não assumida. Se a literatura é ou pretende ser um espaço de reflexão e construção interior e assumindo o autor envergonhadamente que pretende escrever literatura, então nada melhor que construir um texto quase que interactivo onde é o próprio leitor a definir o sorriso de Inês. Não seria também essa a intenção do pintor quando desenhou o supracitado sorriso? Fazer do quadro um potencializador de respostas interiores pelo simples artífice de servir de espelho? E, volto a frisar, para servir de espelho como se o leitor tivesse, e a meu ver tem mesmo, a capacidade de se rever, de se projectar no quadro, como se o quadro fosse uma variável dependente dele e, ainda mais, como se inconscientemente o fizesse, como se inconscientemente respondesse a uma pergunta, como se essa resposta que elabora se tornasse também ela verdadeira, matéria de facto interior, a tal ponto que ele sai reforçado, a tal ponto que a sua construção interior enquanto pessoa saia reforçada após ver-se corroborada de novo. Onde se leu construção interior poderia se ler mundividência, crença, estado de alma, experiência. Tal como toda esta resposta poderia ser a inversa se o texto ou o quadro tivesse a capacidade de perturbar o leitor ou o visionador, mas não tem por isso mantemo-la.
Expus sucintamente a problemática a Inês. Perguntou-me se algum dia pintei um quadro. Confessei-lhe que não. Ela riu-se. Afinal o seu riso era mesmo enigmático per se. Falou-me que nada do que eu dissera interessava, o artista, prosseguiu, procura incessantemente retratar o belo. A beleza virginal ou grotesca tanto importa, em certa medida toda a realidade é composta de vulgares elementos cénicos, de banais pretextos e mundanos enredos cuja facada no absurdo é dada pelo ideal, aquilo que faz dela não um caos desprovido de alma mas um chão para que ele viva. Escrever sobre Tiago é muito mais que escrever sobre um homem, Inês ama-o porque ele é muito mais que um homem. Em seus sonhos, pensamentos ou rasgos, o belo manifesta-se por uma incrível luz quente e branca a que associa a luz da madrugada ou do meio-dia primaveril. Por vezes, quando o pensa enquanto ser móvel ocorre-lhe a imagem de um cavalo branco a galopar esmagando folhas mortas choradas pelas árvores. Mas o elemento final desta tríade é Tiago. Como um semi-deus esculpido com o leite dessa luz que me falava, parece ter sido dado à vida sem antes alguém lhe ter sussurrado sua missão. Em seus olhos fulgurantes, dizia-me, vê os olhos desse mesmo cavalo pisando as fatalidades efémeras da vida, porque Tiago é essa mesma personificação, a materialização do ideal, como se o ideal ganhasse forma humana para ser perceptível a Inês, para que ela pudesse desenhar o belo pela impossibilidade de desenhar uma luz ou pelo desinteresse em desenhar um cavalo. Tiago era assim muito mais que um homem, era sobretudo um quase deus, reforçava, filho de deus mesmo, pelo seu magnetismo, pela forma como respirando prendia Inês ao pincel. E, assim até, ele era o verdadeiro autor da pintura de Inês. E, assim até, ela considerava-se uma livre escrava do seu jugo.
Expus sucintamente a problemática a Inês. Perguntou-me se algum dia pintei um quadro. Confessei-lhe que não. Ela riu-se. Afinal o seu riso era mesmo enigmático per se. Falou-me que nada do que eu dissera interessava, o artista, prosseguiu, procura incessantemente retratar o belo. A beleza virginal ou grotesca tanto importa, em certa medida toda a realidade é composta de vulgares elementos cénicos, de banais pretextos e mundanos enredos cuja facada no absurdo é dada pelo ideal, aquilo que faz dela não um caos desprovido de alma mas um chão para que ele viva. Escrever sobre Tiago é muito mais que escrever sobre um homem, Inês ama-o porque ele é muito mais que um homem. Em seus sonhos, pensamentos ou rasgos, o belo manifesta-se por uma incrível luz quente e branca a que associa a luz da madrugada ou do meio-dia primaveril. Por vezes, quando o pensa enquanto ser móvel ocorre-lhe a imagem de um cavalo branco a galopar esmagando folhas mortas choradas pelas árvores. Mas o elemento final desta tríade é Tiago. Como um semi-deus esculpido com o leite dessa luz que me falava, parece ter sido dado à vida sem antes alguém lhe ter sussurrado sua missão. Em seus olhos fulgurantes, dizia-me, vê os olhos desse mesmo cavalo pisando as fatalidades efémeras da vida, porque Tiago é essa mesma personificação, a materialização do ideal, como se o ideal ganhasse forma humana para ser perceptível a Inês, para que ela pudesse desenhar o belo pela impossibilidade de desenhar uma luz ou pelo desinteresse em desenhar um cavalo. Tiago era assim muito mais que um homem, era sobretudo um quase deus, reforçava, filho de deus mesmo, pelo seu magnetismo, pela forma como respirando prendia Inês ao pincel. E, assim até, ele era o verdadeiro autor da pintura de Inês. E, assim até, ela considerava-se uma livre escrava do seu jugo.
domingo, 5 de junho de 2011
Romeu, o anti-júlio
A vida fez dele muito mais do que uma alma penada. Não era apenas alguém torturado por dilemas remanescentes de um passado perdido no tempo. Era também alguém que levantou a bandeira branca. Paz, pediu, paz não aguento mais. Quando o estrangulamento ameaçava retirar-lhe o último fôlego de vida descobriu o sangue.
A vida fez dele muito mais que uma alma penada, ensinou-o a encontrar no sangue, no sorver do sangue, a tranquilidade, a moleza, o quase refúgio de si próprio. Se Deus o fizera alma penada, alma errante irresolúvel logo nunca morta, também o fizera vampiro, ser capaz de embriagar a sua dor.
Percorreu todos os caminhos infames, sorveu o seu corpo até ser apático, apagado e solitário. Sorveu o tempo até ser niilista, incrédulo e fatalista. Sorveu tudo o que pode toda a sua vida até que chorou. Quando chorou, chorou toda a sua vida. Nesse dia à habitual língua que se torneava erógena em volta dos seus caninos deu a primeira dentada.
Chorou todos os caminhos infames que a procura de sangue o obrigou a percorrer. Chorou todas as mentiras, todas as ilusões, todas as traições. Porque nesse dia alguém abriu a porta inesperadamente e ele estava de dentes em punho a sugar o sangue dela.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que por mais que julgasse estar a viver com ela num paraíso, por mais que o futuro pudesse iluminar o avante, era o passado que o dominava ainda.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que a última esperança contra o apocalipse estava a ser violada por uma alma penada em busca do seu refúgio. Esse foi o dia em que a afastou dos seus dentes.
Nunca teve tanta sede de sangue como nesse dia. Soltou-se das amarras que transportou enquanto se iludira, enquanto pensara poder ser quem não era. Foi um jubileu de tudo aquilo que tinha acumulado dentro de si.
Nunca teve tanta sede como nesse dia em que se reencontrou, vivo, ágil, elegante. Todo o seu corpo havia descansado o suficiente para suportar nova campanha. Tinha rejuvenescido, ganho carne, cor, graça suficientes para iludir vítimas com total facilidade.
Mas se alguma coisa houver de original nesta história foi que não foi preciso um drama convencional escrito com cancro, sida, overdose para ele perceber. Não foi preciso ter a prova acabada que o sangue não lhe traria sossego para rejeitá-lo. Bastou ela olhar-lhe de novo com os olhos de quem não vê um monstro.
E a única parte original nesta história foi que ele abriu, abriu de repente a porta do seu passado e do seu presente, mostrou-se longe de medo quem era e de quem fora. Atirou-se para a luz, para a sua luz, para a luz que mata os vampiros. Morreu para sempre para ela quando ela viu porque ele nunca se dera à luz, todo o monstro que lhe escondera. Nesse dia, enquanto a luz o desintegrava e o corroía o corpo, olhou para ela com um sorriso nos lábios, com um sorriso de quem conseguira por um dia estar à altura do seu olhar.
Romeu fora uma personagem de romance, por escolha sua.
A vida fez dele muito mais que uma alma penada, ensinou-o a encontrar no sangue, no sorver do sangue, a tranquilidade, a moleza, o quase refúgio de si próprio. Se Deus o fizera alma penada, alma errante irresolúvel logo nunca morta, também o fizera vampiro, ser capaz de embriagar a sua dor.
Percorreu todos os caminhos infames, sorveu o seu corpo até ser apático, apagado e solitário. Sorveu o tempo até ser niilista, incrédulo e fatalista. Sorveu tudo o que pode toda a sua vida até que chorou. Quando chorou, chorou toda a sua vida. Nesse dia à habitual língua que se torneava erógena em volta dos seus caninos deu a primeira dentada.
Chorou todos os caminhos infames que a procura de sangue o obrigou a percorrer. Chorou todas as mentiras, todas as ilusões, todas as traições. Porque nesse dia alguém abriu a porta inesperadamente e ele estava de dentes em punho a sugar o sangue dela.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que por mais que julgasse estar a viver com ela num paraíso, por mais que o futuro pudesse iluminar o avante, era o passado que o dominava ainda.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que a última esperança contra o apocalipse estava a ser violada por uma alma penada em busca do seu refúgio. Esse foi o dia em que a afastou dos seus dentes.
Nunca teve tanta sede de sangue como nesse dia. Soltou-se das amarras que transportou enquanto se iludira, enquanto pensara poder ser quem não era. Foi um jubileu de tudo aquilo que tinha acumulado dentro de si.
Nunca teve tanta sede como nesse dia em que se reencontrou, vivo, ágil, elegante. Todo o seu corpo havia descansado o suficiente para suportar nova campanha. Tinha rejuvenescido, ganho carne, cor, graça suficientes para iludir vítimas com total facilidade.
Mas se alguma coisa houver de original nesta história foi que não foi preciso um drama convencional escrito com cancro, sida, overdose para ele perceber. Não foi preciso ter a prova acabada que o sangue não lhe traria sossego para rejeitá-lo. Bastou ela olhar-lhe de novo com os olhos de quem não vê um monstro.
E a única parte original nesta história foi que ele abriu, abriu de repente a porta do seu passado e do seu presente, mostrou-se longe de medo quem era e de quem fora. Atirou-se para a luz, para a sua luz, para a luz que mata os vampiros. Morreu para sempre para ela quando ela viu porque ele nunca se dera à luz, todo o monstro que lhe escondera. Nesse dia, enquanto a luz o desintegrava e o corroía o corpo, olhou para ela com um sorriso nos lábios, com um sorriso de quem conseguira por um dia estar à altura do seu olhar.
Romeu fora uma personagem de romance, por escolha sua.
terça-feira, 5 de abril de 2011
Vasco - II
Surge um remorso, apesar de tudo, quando tento compreende-lo: fui ensinado que a beleza deriva exactamente do imcompreensivel. Se houvesse um motivo que escolhesse para definir porque gosto de uma mulher seria o seu esgar. O esgar é o circunscrever de uma expressão entre as milhentas quantidades de imagens que recebemos num curto espaço de tempo, sendo que de esse recta de recessão sobressaem sempre oscilações, momentos que arrebentam a escala, mas que só depois, muito depois, quando nos tentamos lembrar de uma mulher, voltam a surgir, aquele exacto momento que passa a constituir a galeria, o museu diria-se até. Mas então esgar é esse momento, essa imagem feita de traços, traços da face, da trajectória dos olhos, de todos os vectores de movimentos do cabelo, traços que deixam rasto. Aceitaria sem dúvida o desafio de observar cada gesto que uma mulher faz em câmara lenta, e talvez ainda mais lenta do que me seria proposto, reparar na oscilação que as sobrancelhas fazem com a variação infinitesimal da luz, o próprio cabelo que ao entranhar-se e ao soltar-se espraia um universo de novas cores, os olhos eles camaleonicos eficazes em esconder entre a contracção e dilatação da iris os pensamentos mais ocultos, e o seu peito, sobretudo o seu peito na sua destreza em subtilmente se adequar a todo o movimento do corpo, arredondando-se, largando-se, arredondando-se de novo, para se largar de novo como um coração que palpita. Pára.
Acrescenta um novo eixo, atira-me como um tapete para que me marquem as suas pegadas de perfume, para que sinta o exacto ponto em que o seu corpo intersecta a sua sombra sobre mim, esse ponto nevrálgico entre a bruma e o mar. Pára.
Deixa-te de mariquices, dá me de volta os meus olhos, câmara lenta de novo, ainda mais lenta, ainda mais lenta ainda, há um sinal que oscila debaixo do queixo, aparece e desaparece, a elipse amendoada dos olhos parece desenhar-se melhor sobre o esquerdo, depois sobre o direito, quando reparo que a própria íris parece ter perdido alguns grãos negros do centro para a sua órbita que nunca antes tinha visto. Pego na câmara dou um ponta-pé a todos os técnicos que me aparecem pela frente até o cenário, esqueço o momento, apenas quero fixar esse olhar que lançou fora como o soutien que deixa entrever no seu decote, a cauda do gato a serpentar por de tras do esconderijo. Eu vi.
É maníaco. Com certeza, mas se não vir na mulher mais que a besta doida que me vai espalmar o peito contra a cara enquanto me cavalga, seria apenas para mim não mais que uma besta doida. O fascínio da sua profundidade enquanto ser cínico por não ditado por regras universais, a vontade de agredir o seu espaço e do inteirar, de o conhecer mais que uma prisão lançada ao meu desespero é uma porta, uma porta nessa demanda louca que é encontrá-la nua, porque por isso amo mulheres nuas, essa pátria de uma rosa de espuma, essa terra de aurora silvestre, essa descodificação edeniana do mundo, como um outro mundo, como se encolhesse e coubesse na sua casa de bonecas, ou caisse no poço de Alice no país das Maravilhas, como se Alice me dessa a mão e me levasse com ela, quando, finalmente, julguei ter fotografado o seu olhar, o tal olhar, o tal olhar que julguei ter visto, o tal olhar que me levou a gatinhar até onde estou e ela me deixasse, rídiculo, nu, com uma fotografia cheia de nada a não ser o meu reflexo, câmara em punho, apanhado na capa do jornal.
Acrescenta um novo eixo, atira-me como um tapete para que me marquem as suas pegadas de perfume, para que sinta o exacto ponto em que o seu corpo intersecta a sua sombra sobre mim, esse ponto nevrálgico entre a bruma e o mar. Pára.
Deixa-te de mariquices, dá me de volta os meus olhos, câmara lenta de novo, ainda mais lenta, ainda mais lenta ainda, há um sinal que oscila debaixo do queixo, aparece e desaparece, a elipse amendoada dos olhos parece desenhar-se melhor sobre o esquerdo, depois sobre o direito, quando reparo que a própria íris parece ter perdido alguns grãos negros do centro para a sua órbita que nunca antes tinha visto. Pego na câmara dou um ponta-pé a todos os técnicos que me aparecem pela frente até o cenário, esqueço o momento, apenas quero fixar esse olhar que lançou fora como o soutien que deixa entrever no seu decote, a cauda do gato a serpentar por de tras do esconderijo. Eu vi.
É maníaco. Com certeza, mas se não vir na mulher mais que a besta doida que me vai espalmar o peito contra a cara enquanto me cavalga, seria apenas para mim não mais que uma besta doida. O fascínio da sua profundidade enquanto ser cínico por não ditado por regras universais, a vontade de agredir o seu espaço e do inteirar, de o conhecer mais que uma prisão lançada ao meu desespero é uma porta, uma porta nessa demanda louca que é encontrá-la nua, porque por isso amo mulheres nuas, essa pátria de uma rosa de espuma, essa terra de aurora silvestre, essa descodificação edeniana do mundo, como um outro mundo, como se encolhesse e coubesse na sua casa de bonecas, ou caisse no poço de Alice no país das Maravilhas, como se Alice me dessa a mão e me levasse com ela, quando, finalmente, julguei ter fotografado o seu olhar, o tal olhar, o tal olhar que julguei ter visto, o tal olhar que me levou a gatinhar até onde estou e ela me deixasse, rídiculo, nu, com uma fotografia cheia de nada a não ser o meu reflexo, câmara em punho, apanhado na capa do jornal.
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