quarta-feira, 13 de julho de 2011
Inês- II
Expus sucintamente a problemática a Inês. Perguntou-me se algum dia pintei um quadro. Confessei-lhe que não. Ela riu-se. Afinal o seu riso era mesmo enigmático per se. Falou-me que nada do que eu dissera interessava, o artista, prosseguiu, procura incessantemente retratar o belo. A beleza virginal ou grotesca tanto importa, em certa medida toda a realidade é composta de vulgares elementos cénicos, de banais pretextos e mundanos enredos cuja facada no absurdo é dada pelo ideal, aquilo que faz dela não um caos desprovido de alma mas um chão para que ele viva. Escrever sobre Tiago é muito mais que escrever sobre um homem, Inês ama-o porque ele é muito mais que um homem. Em seus sonhos, pensamentos ou rasgos, o belo manifesta-se por uma incrível luz quente e branca a que associa a luz da madrugada ou do meio-dia primaveril. Por vezes, quando o pensa enquanto ser móvel ocorre-lhe a imagem de um cavalo branco a galopar esmagando folhas mortas choradas pelas árvores. Mas o elemento final desta tríade é Tiago. Como um semi-deus esculpido com o leite dessa luz que me falava, parece ter sido dado à vida sem antes alguém lhe ter sussurrado sua missão. Em seus olhos fulgurantes, dizia-me, vê os olhos desse mesmo cavalo pisando as fatalidades efémeras da vida, porque Tiago é essa mesma personificação, a materialização do ideal, como se o ideal ganhasse forma humana para ser perceptível a Inês, para que ela pudesse desenhar o belo pela impossibilidade de desenhar uma luz ou pelo desinteresse em desenhar um cavalo. Tiago era assim muito mais que um homem, era sobretudo um quase deus, reforçava, filho de deus mesmo, pelo seu magnetismo, pela forma como respirando prendia Inês ao pincel. E, assim até, ele era o verdadeiro autor da pintura de Inês. E, assim até, ela considerava-se uma livre escrava do seu jugo.
domingo, 5 de junho de 2011
Romeu, o anti-júlio
A vida fez dele muito mais que uma alma penada, ensinou-o a encontrar no sangue, no sorver do sangue, a tranquilidade, a moleza, o quase refúgio de si próprio. Se Deus o fizera alma penada, alma errante irresolúvel logo nunca morta, também o fizera vampiro, ser capaz de embriagar a sua dor.
Percorreu todos os caminhos infames, sorveu o seu corpo até ser apático, apagado e solitário. Sorveu o tempo até ser niilista, incrédulo e fatalista. Sorveu tudo o que pode toda a sua vida até que chorou. Quando chorou, chorou toda a sua vida. Nesse dia à habitual língua que se torneava erógena em volta dos seus caninos deu a primeira dentada.
Chorou todos os caminhos infames que a procura de sangue o obrigou a percorrer. Chorou todas as mentiras, todas as ilusões, todas as traições. Porque nesse dia alguém abriu a porta inesperadamente e ele estava de dentes em punho a sugar o sangue dela.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que por mais que julgasse estar a viver com ela num paraíso, por mais que o futuro pudesse iluminar o avante, era o passado que o dominava ainda.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que a última esperança contra o apocalipse estava a ser violada por uma alma penada em busca do seu refúgio. Esse foi o dia em que a afastou dos seus dentes.
Nunca teve tanta sede de sangue como nesse dia. Soltou-se das amarras que transportou enquanto se iludira, enquanto pensara poder ser quem não era. Foi um jubileu de tudo aquilo que tinha acumulado dentro de si.
Nunca teve tanta sede como nesse dia em que se reencontrou, vivo, ágil, elegante. Todo o seu corpo havia descansado o suficiente para suportar nova campanha. Tinha rejuvenescido, ganho carne, cor, graça suficientes para iludir vítimas com total facilidade.
Mas se alguma coisa houver de original nesta história foi que não foi preciso um drama convencional escrito com cancro, sida, overdose para ele perceber. Não foi preciso ter a prova acabada que o sangue não lhe traria sossego para rejeitá-lo. Bastou ela olhar-lhe de novo com os olhos de quem não vê um monstro.
E a única parte original nesta história foi que ele abriu, abriu de repente a porta do seu passado e do seu presente, mostrou-se longe de medo quem era e de quem fora. Atirou-se para a luz, para a sua luz, para a luz que mata os vampiros. Morreu para sempre para ela quando ela viu porque ele nunca se dera à luz, todo o monstro que lhe escondera. Nesse dia, enquanto a luz o desintegrava e o corroía o corpo, olhou para ela com um sorriso nos lábios, com um sorriso de quem conseguira por um dia estar à altura do seu olhar.
Romeu fora uma personagem de romance, por escolha sua.
terça-feira, 5 de abril de 2011
Vasco - II
Acrescenta um novo eixo, atira-me como um tapete para que me marquem as suas pegadas de perfume, para que sinta o exacto ponto em que o seu corpo intersecta a sua sombra sobre mim, esse ponto nevrálgico entre a bruma e o mar. Pára.
Deixa-te de mariquices, dá me de volta os meus olhos, câmara lenta de novo, ainda mais lenta, ainda mais lenta ainda, há um sinal que oscila debaixo do queixo, aparece e desaparece, a elipse amendoada dos olhos parece desenhar-se melhor sobre o esquerdo, depois sobre o direito, quando reparo que a própria íris parece ter perdido alguns grãos negros do centro para a sua órbita que nunca antes tinha visto. Pego na câmara dou um ponta-pé a todos os técnicos que me aparecem pela frente até o cenário, esqueço o momento, apenas quero fixar esse olhar que lançou fora como o soutien que deixa entrever no seu decote, a cauda do gato a serpentar por de tras do esconderijo. Eu vi.
É maníaco. Com certeza, mas se não vir na mulher mais que a besta doida que me vai espalmar o peito contra a cara enquanto me cavalga, seria apenas para mim não mais que uma besta doida. O fascínio da sua profundidade enquanto ser cínico por não ditado por regras universais, a vontade de agredir o seu espaço e do inteirar, de o conhecer mais que uma prisão lançada ao meu desespero é uma porta, uma porta nessa demanda louca que é encontrá-la nua, porque por isso amo mulheres nuas, essa pátria de uma rosa de espuma, essa terra de aurora silvestre, essa descodificação edeniana do mundo, como um outro mundo, como se encolhesse e coubesse na sua casa de bonecas, ou caisse no poço de Alice no país das Maravilhas, como se Alice me dessa a mão e me levasse com ela, quando, finalmente, julguei ter fotografado o seu olhar, o tal olhar, o tal olhar que julguei ter visto, o tal olhar que me levou a gatinhar até onde estou e ela me deixasse, rídiculo, nu, com uma fotografia cheia de nada a não ser o meu reflexo, câmara em punho, apanhado na capa do jornal.
Dário e Pessoa
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças. Assemelham-se a glóbulos vermelhos caminhando por veias, assemelham-se, a um organismo processando vida. Esbatem uns contra os outros ansiosamente, caminham apressadamente pelas bifurcações que se lhes deparam. Param, recomeçam, param de novo, retomam outra vez o seu caminho, voltam a esbater-se sempre indiferentes uns ao outros.
segunda-feira, 28 de março de 2011
Liliana
A busca de Liliana, como banalmente entre os artistas, era a da autenticidade. Mas para ela, o que era autentico era o que era virgem, puro, fresco. Para quem quer sorver a nascente da sua fonte, que lhe interessa remar sobre ela, convidar outros na margem, fazer um passeio romântico entre beijos ao luar sobre ela. O respeito perfeito pela Arte, entenda-se a compreensão da realidade, e sobretudo o respeito da não interferência, o terminar da ousadia de tentar representa-la, a recusa do paradoxo do jardineiro que ao querer semear a relva a calca. Os artistas, são um embuste dizia, procuram o verdadeiro quando e falso o que criam, não por serem hipócritas conscientemente, mas por intentarem algo fracassado a nascença.
Liliana gostaria de reencarnar, ser uma arvore, longos tempos. Deixar o que a rodeia ganhar a sua própria vida, sentindo-lhe a sua pulsacao, nascer dele como um fruto. Ser um dano colateral do conjunto de matérias e reacoes químicas que a sucederam e alienar-se. Nunca inferir sobre outrem, respeitar o curso natural dos outros, esperando que também eles soubessem por eles descobrir-se como artistas, ou seja, paneis brancos como milhares de pequenos tecidos reunidos mais línguas do que tecidos porque ávidos de saborear a vida, o sabor da vida como milhares de entendimentos possíveis dispersos numa manada de cavalos livres relinchando como se fosse essa a linguagem ultima, a indecefravel, a autoctene, a verdadeira.
Emanuel
Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido, no dia seguinte acordas e na tua memória, seca e morta, só vês a nódoa dos vossos fluídos, como que cavalos que montaram para sucumbir a derradeira barreira. Vulgar e Banal. Humano. Banal portanto. Nunca o materializes, a genuflexão é uma dádiva, protege o teu altar e sê fanático. Ser homem é ser não Deus. Se fôssemos Deus não eramos homens, porque se fôssemos Deus tudo saberíamos; por não tudo sabermos criamos ilusões. Guarda a tua como se fosse o teu hímen antes de um casamento cigano.... Nunca.
Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido. E se fores queima a tua casa e mata os teus pais. Veste-te de negro e esconde-te numa viela. Quando vires passar a pessoa certa observa-a, sorve-a, xupa-a em câmara lenta. Persegue-a até ao metro. Senta-te em frente dela e penetra-a pelo o olhar, até te tornares incómodo, até ela se assustar, até lhe cheirares o medo. Cheira-lhe o medo e esboça um sorriso sodomita, aproveita-te, delicia-te. Encosta-lhe a faca ao pescoço como ameaça, procura-lhe a confissão: que a volumetria crescente do seu medo te dê estocadas cada vez mais fortes, para que grites mais, para que vociferes, para que a pessoa a tua frente fique ainda mais apavorada, para que te venhas só da memória dos teus tempos áureos. Depois, entre o pânico da tua vítima, chantageia-a até ela finalmente confessar qual é o seu poeta preferido. E desta vez não faças merda: nunca vás para a cama com o teu poeta preferido.