quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Joaquim

Há uma certa poesia na forma sedenta e possessa como o mosquito se prepara para me picar. Vejo o seu habitual zumbido a oscilar ligeiramente de frequência, como se afinasse com algum diapasão desperto pela libertação da negra beleza das suas patas na minha pele, os seus olhos parecem mais esbugalhados e brilhantes, a sua pele por momentos reflecte uma luz que se atenua, enquanto se extenua, a sua sede de sangue.
Adoro sentir a forma como me atropelam as formigas quando passam por cima de mim, como algumas me mordem, olho para eles como o meu pai olhava para mim quando brincava com a mão dele, abraço as com a minha ajuda, reparo o que elas deixam ficar para trás e pego nele dando lhes o seu pão.
O meu pai não gostava dos meus gerúndios, achava os feios e abrasileirados. Eu adorava o meu pai, ele podia me bater mas nada achava mais bonito que ver no espelho a pele a ficar negra, tão negra como a pele duma formiga. Achava bonito, todos os processos biológicos associados a esse facto todos os tons que se espraiavam desde do castanho ao púrpura: passando pelo negro.
Adoro o negro, talvez o único motivo pelo qual sou patriótico, acho que o negro e a cor de Portugal. Que mais cor atribuir aos nossos trabalhadores mal pagos? Ou a quantidade de pessoas que morreram no mar por um monarca doido? Que cor mais atribuir, ao fado, a saudade, a Amália, Pessoa ou ao presente?
Identifico me com o negro desde criança, lembro-me ate da cor do vestido da minha tia Giguinhas, viúva muito nova, tinha sempre orvalho seco nos olhos, mas quando íamos visitar a campa das pessoas da família a lágrima molhava-se. Seria talvez dos espectáculos mais bonitos da minha vida, ver as lágrimas da minha tia a nascer frutos da convalescença pura e instintiva do seu corpo, ver a dor a pingar no chão como uma pancada suave dum xilofone, ver a dor, no seu estado mais puro e livre. Agora que todos se foram embora sento-me aqui, admiro a volatilidade da vida com o partir da lágrima da minha tia e o passar dos vermes saídos das campas. Beijo o chão ainda húmido e sinto um verme a tentar comer-me. Deixo-o. A minha pele começa a ficar pulverizada por doces pintas vermelhas da alergia que tenho aos vermes. E ao sangue.
Assim, fiquei duplamente surpreendido quando matei o meu pai. O seu sangue jorrava como uma ejaculação há muito esperada. Nunca julguei que o sangue fosse tão quente. A cada corte que lhe desferia no peito mais sangue jorrava esplendidamente parecendo ate, pelas minhas nódoas vermelhas nas pernas, que iria ficar baptizado para sempre por amor ao que era belo. Mas as nódoas passaram, e também aprendi como tudo o que era belo deveria ser moderado, como tinha de por vezes fechar as portas a dor, a mais pura beleza.
Não há nada mais bonito que a dor física ou animalidade. São dois sentimentos puros e irrefutáveis. A alegria e um êxtase, uma mentira que o demónio-espiritual tenta nos incutir. E a civilização e a sua consequente moral, outra. Quantas pessoas já viste alegres? E das que vistes todas estavam efectivamente alegres? E das que estavam efectivamente alegres estariam também alegres da mesma forma? Quantas pessoas já viste civilizadas? E das pessoas que viste civilizadas eram efectivamente civilizadas? E das que eram efectivamente civilizadas eram todas civilizadas da mesma forma?
Por isso, a todos esses acrescentos alucinogenicos eu nego guarida. A dor conheço, a dor todos conhecemos, como conhecemos o instinto: a nossa animalidade. Ninguém ousa negar que não tem dor nenhum homem jamais não sentiu a dor física no seu corpo, nem ninguém ousa negar que algum homem beijou uma mulher sem jamais ter querido a sua carne.
A poesia é o real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. E Quanto mais verdadeiro, mais poético.

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