domingo, 8 de fevereiro de 2015

XXIII

Amava-te pela tua senilidade
na dança de quem usa a bengala como detetor de minas
à procura de encontrar nas raízes
uma geração louca esfomeada que para conquistar terras a cheirar a mato
componha odes para violinos com facas sobre os tendões

tu esmurravas a manhã mansa porque eras o único crédulo
uma multidão assertiva e contestária lá fora
era apenas ruído
os teus olhos vermelhos a cilindrar a madrugada
tinhas uma outra economia para as coisas de trazer por casa
e os gatos pareciam abácos com crânios de palavras

era escuro o lugar onde fumavas
a procurar entre os bafos expelidos algo onde te agarrar
para te elevares para lá do quarto
para lá dos incêndios que ninguem queria engolir
muito embora escrevesses poemas com espátulas.

A solidão das coisas caía às gotas na tua sala
mas o charco não fazia um espelho aos passageiros
havia demasiadas ruas proibidas, outras tantas fechadas pelo Estado
mas tu ainda mostravas uma violência sã
não parecias desejoso de palmadas no dorso
tu que querias morder com um cão danado
continuavas à espera nas Urgências
como o fósforo mais sensível da noite

sábado, 13 de dezembro de 2014

XXII

por uma nuve de fumo
emerge o meu craneo calvo de olhos
as luzes da cidade projectam-se lhe na face às estaladas
rasgões repentinos e frenéticos contaminados por sombras
homens curvados como bestas insaciáveis
que paulatinamente progridem para uma certa erecção na postura
sorrindo replectos de merda na boca

julgamos poder viver ai prostitutas baratas
obrigados a assistir a todos os milagres da representação
agradecendo com todos os louvores a enfermeiras-serpentes
que faziam da nossa velhice um momento para cuidar da nossa demência
com o medicamento por longos tempos fermentado
debaixo de uma língua sem palavras

Aborrecemos-nos nas estantes do tédio
até que uma outra raiva se levantou dentro nós
como um pedido por Deus   perdido         no meio deserto
E gritámos de felicidade quando nos ofuscaram com um clarão contínuo
a imagem perfeitamente estanque duma terra intelígvel
onde pudessemos enfim suportar as paredes da cara

mas assim que aproximamos as mãos das coisas
três vultos terríficos apareceram num ápice
manifestações de um subsconciente oculto que nos aprisionava
cada vez que a nossa boca balbuciava a palavra carne

percebemos que forâmos feitos da costela de um patriarca ascético
e por isso sem gula mordemos convictamente todas as maçãs
queriamos à fina força plantar no chão raízes que nos ligassem ao húmus
mas elas apenas nos arrastaram vertiginosamente
para a nossa condição prévia de tela passiva
profanados pela difusao constante de um enredo estrangeiro e ordinario

e não só os cães nos confundiram com bocas-de-incêndio
quando nos ajoelhamos no meio das estradas
olhos fechados e boca semi-aberta
a esperar o cair da primeira gota de chuva
sobre a nossa testa

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

XXI

Vagueei pelas ruas matinais como ave de mau agoiro
murchando as plantações de sono por dentro dos dormitórios
Com a minha passagem lenta e enjoada à porta desses habitáculos
Sou inspecionado e inquirido pelos porteiros
E muito por de trás do seu queixo interrogatório
Vou rasgando os casulos para impor verdades precoces
Sobre o sentido mecânico do caminho
E o porquê das principais peças agora serem importadas
De países onde a contrafação é obra tosca de mãos negligentes
Que não sabem o que tem de responsabilidade sobre o silêncio no espaço
Lugar de longas vistas pausadas sobre horizontes ininterruptos
Sem obeliscos onanistas a intentar um poema contínuo

Faltam-lhes pulmões que não arrebentem com a pressão atmosférica
Com a vertigem e a fome obcecada por entendimentos pederestes
Porque se chegassem ao pico do Evereste púlpito do auditório do mundo
Seria para protestar contra a falta de subsídios para cumprir os desígnios
Que lhes prometeram quando se julgava que ainda era útil cantar-lhes o hino nacional
Esperando lucrar a prestações futuras toda uma carreira contributiva de benfeitorias
Coleções de fotografias a dar de comer a pobres e a abraçar pretos

São o inverso dos ciganos sentados nas soleiras exaustos
após tanto terem caminhado pelas avenidas deste mundo
mirando agora o céu de olhos lavados de quem olha e tem muitos e largos olhos miúdos
Para esquecer o negrume a lixo que se lhes encrostou nos dedos
E nunca cumprimentar por nojo todos os restantes viandantes
Que ostentam a horas calendarizadas pela inspeção militar
Pequenas mãos trémulas na lividez higiénica
Porque para esses a putrefação dá-se essencialmente por dentro


Talvez só a solidão explique tanta necrofilia a pulsar por dentro dos poetas

domingo, 7 de dezembro de 2014

Minha Geração

Lembro-me com muita inveja de um texto do Manuel António Pina sobre a sua geração, era um lamento por ter observado uma decadência desde os tempos que andava de braço dado com os seus pares em cordões humanos imensos. Depois chegou o fenómeno da divisão do trabalho e consequente verticalização dos assentos. Mas Pina lembrava-se lacrimoso desses tempos para de seguida perguntar, hoje, que era feito das juras e promessas passadas, dos gritos éticos a que ninguém chamava ainda ‘imperativo de consciência’ mas apenas fazer política.
A minha inveja para com o Pina é por eu nunca ter tido esse tempo áureo passado, quando a minha geração despoletou já foi para vir pelas montanhas a entoar cânticos a feder a coelho e tristes bichas operárias. Mal lhes nasceu o primeiro pelo púbico e as mais brilhantes gentes do meu tempo se dedicaram ao negócio da trepa e os outros, os menos atentos, dedicaram-se ao festival dionisíaco de profanação do rendimento dos pais. Não somos a geração dos indignados somos a geração da mini a 50 cts, do calhau de ganza a 5 euros e das entradas à pala.

Também por isso os protestos e levantamentos onde jovens participam se caraterizam muito recorrentemente por não ter uma agenda ou uma proposta. Eles estão completamente alienados da sua capacidade fabulatória e imaginativa sobressaindo a uma raiva ontológica que nunca saberão converter em ideológica.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Agora, Agora

Até podiam ainda existir
teclas sãs na máquina de escrever
mas nós rasgamos os pulsos para desencravar as viciosas
e no seu tossir velho            enferrujado             ritmam um laborar interminável
contra o abismático precipício da escrita.

Miramo-nos nessa poça narcísica
Borrão confuso que afirmamos lúcido
Ter tão claras formas e significantes traços
Crentes tão ferverosamente numa identidade

Mas o atento leitor é como inversa Circe
Devolve progressivamente a ideia à forma
Sendo claro porque é que o papel a ser higiénico
Tem sempre por fim o autoclismo.

E regressamos a casa para que carpideiras pousem nos ramos
Das cicatrizes que carregamos nas costas
Onde o mestre da diligência é o pai
Cujo reconhecimento queremos conquistar pelo martírio.

domingo, 16 de novembro de 2014

XX

Confio palavras como sapatos a uma imensa cidade de pensamentos
Coroam-se marcas de pegadas em ruas sem passadeiras
E não há medo de enveredar por todas as vias
Nenhuma será errada ao confronte com o atropelamento
Porque queremos violar segredos contra as têmporas das cascas
Esmurrar-lhes verdade sobre a persistência dos antidepressivos.

Há tanto tempo que são domesticamente chocados
Pelas nossas mães enquanto falam da telenovela do nosso passado àureo
Com todos os detalhes nobiliárquicos sobre a origem da família e do seu triunfo sobre a selva.
Mastigamos suavemente a doçura com que nos chamam bárbaros
Por termos habitado o lado de dentro da chama
Entrado pela estreita portinhola deixada por versos mortos
Dos quais escolhemos ser altares paleontológicos

Os corvos cagam-nos em cima
É o mesmo desdém fatídico com que os turistas fazem poses por cima de nós
Expondo as nossas partes íntimas para as suas câmaras fotográficas
Trazendo para casa uma estranha forma de cumplicidade entre os seus sorrisos
Grandes positivistas apostos em ter descoberto toda a dinâmica da evolução da civilização
Sem nunca terem provado a carne da melhor prostituta de Camden Town.

Estaremos para sempre nesta fornalha
alimentada pela propulsão do monóculo à luz solar
sussurrando entre os ouvidos os tempos do escuro
em que fazíamos sexo felino pelas sombras das avenidas
sem livrarias a venderem anuários científicos como jaulas.

Nós que fôramos completamente compreendidos porque incompreendidos
Mas que ao acordarmos no colete-de-forças da curiosidade desses pedófilos
Temos ataques de raiva e blasfemamos até a poesia por nos ter denunciado
Porque é contra a nossa natureza que nos erguemos
Mas não se enganem
Estamos completamente sãos.

sábado, 8 de novembro de 2014

Condição Humana

Ao chegar a um Quintal dum amigo, ele convidou-me para ir observar um raro (para ele) fenómeno. Apresentou-me três galinhas e um pato. O pato segundo ele fazia tudo igual ao que as galinhas faziam, empoleirava-se nos mesmos sítios, comia a mesma comida, até lhes tentava imitar o cacarejar, muito embora tivesse lugar próprio, ração própria e grasnar também ele próprio.

- É por só ver galinhas à volta que o pato pensa que também é uma galinha - convidou-me o meu amigo a interpretar
- É exactamente essa a perversidade do termo 'condição humana' - rematei