sábado, 13 de dezembro de 2014

XXII

por uma nuve de fumo
emerge o meu craneo calvo de olhos
as luzes da cidade projectam-se lhe na face às estaladas
rasgões repentinos e frenéticos contaminados por sombras
homens curvados como bestas insaciáveis
que paulatinamente progridem para uma certa erecção na postura
sorrindo replectos de merda na boca

julgamos poder viver ai prostitutas baratas
obrigados a assistir a todos os milagres da representação
agradecendo com todos os louvores a enfermeiras-serpentes
que faziam da nossa velhice um momento para cuidar da nossa demência
com o medicamento por longos tempos fermentado
debaixo de uma língua sem palavras

Aborrecemos-nos nas estantes do tédio
até que uma outra raiva se levantou dentro nós
como um pedido por Deus   perdido         no meio deserto
E gritámos de felicidade quando nos ofuscaram com um clarão contínuo
a imagem perfeitamente estanque duma terra intelígvel
onde pudessemos enfim suportar as paredes da cara

mas assim que aproximamos as mãos das coisas
três vultos terríficos apareceram num ápice
manifestações de um subsconciente oculto que nos aprisionava
cada vez que a nossa boca balbuciava a palavra carne

percebemos que forâmos feitos da costela de um patriarca ascético
e por isso sem gula mordemos convictamente todas as maçãs
queriamos à fina força plantar no chão raízes que nos ligassem ao húmus
mas elas apenas nos arrastaram vertiginosamente
para a nossa condição prévia de tela passiva
profanados pela difusao constante de um enredo estrangeiro e ordinario

e não só os cães nos confundiram com bocas-de-incêndio
quando nos ajoelhamos no meio das estradas
olhos fechados e boca semi-aberta
a esperar o cair da primeira gota de chuva
sobre a nossa testa

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

XXI

Vagueei pelas ruas matinais como ave de mau agoiro
murchando as plantações de sono por dentro dos dormitórios
Com a minha passagem lenta e enjoada à porta desses habitáculos
Sou inspecionado e inquirido pelos porteiros
E muito por de trás do seu queixo interrogatório
Vou rasgando os casulos para impor verdades precoces
Sobre o sentido mecânico do caminho
E o porquê das principais peças agora serem importadas
De países onde a contrafação é obra tosca de mãos negligentes
Que não sabem o que tem de responsabilidade sobre o silêncio no espaço
Lugar de longas vistas pausadas sobre horizontes ininterruptos
Sem obeliscos onanistas a intentar um poema contínuo

Faltam-lhes pulmões que não arrebentem com a pressão atmosférica
Com a vertigem e a fome obcecada por entendimentos pederestes
Porque se chegassem ao pico do Evereste púlpito do auditório do mundo
Seria para protestar contra a falta de subsídios para cumprir os desígnios
Que lhes prometeram quando se julgava que ainda era útil cantar-lhes o hino nacional
Esperando lucrar a prestações futuras toda uma carreira contributiva de benfeitorias
Coleções de fotografias a dar de comer a pobres e a abraçar pretos

São o inverso dos ciganos sentados nas soleiras exaustos
após tanto terem caminhado pelas avenidas deste mundo
mirando agora o céu de olhos lavados de quem olha e tem muitos e largos olhos miúdos
Para esquecer o negrume a lixo que se lhes encrostou nos dedos
E nunca cumprimentar por nojo todos os restantes viandantes
Que ostentam a horas calendarizadas pela inspeção militar
Pequenas mãos trémulas na lividez higiénica
Porque para esses a putrefação dá-se essencialmente por dentro


Talvez só a solidão explique tanta necrofilia a pulsar por dentro dos poetas

domingo, 7 de dezembro de 2014

Minha Geração

Lembro-me com muita inveja de um texto do Manuel António Pina sobre a sua geração, era um lamento por ter observado uma decadência desde os tempos que andava de braço dado com os seus pares em cordões humanos imensos. Depois chegou o fenómeno da divisão do trabalho e consequente verticalização dos assentos. Mas Pina lembrava-se lacrimoso desses tempos para de seguida perguntar, hoje, que era feito das juras e promessas passadas, dos gritos éticos a que ninguém chamava ainda ‘imperativo de consciência’ mas apenas fazer política.
A minha inveja para com o Pina é por eu nunca ter tido esse tempo áureo passado, quando a minha geração despoletou já foi para vir pelas montanhas a entoar cânticos a feder a coelho e tristes bichas operárias. Mal lhes nasceu o primeiro pelo púbico e as mais brilhantes gentes do meu tempo se dedicaram ao negócio da trepa e os outros, os menos atentos, dedicaram-se ao festival dionisíaco de profanação do rendimento dos pais. Não somos a geração dos indignados somos a geração da mini a 50 cts, do calhau de ganza a 5 euros e das entradas à pala.

Também por isso os protestos e levantamentos onde jovens participam se caraterizam muito recorrentemente por não ter uma agenda ou uma proposta. Eles estão completamente alienados da sua capacidade fabulatória e imaginativa sobressaindo a uma raiva ontológica que nunca saberão converter em ideológica.