Os seus olhos acenderam-se. Um grande e vasto incêndio. O
chiar das roldanas do comboio levanta-lhe o cabelo: solavanco, após solavanco,
parecia haver um desrespeito por aquele momento. Pedir-se-ia silêncio, um
arrastar lento como um golpe de asa, subtil, leve, enquanto via lentamente o
espaço a cravar-se entre os dois. Joana debruçou-se na janela e tentou entre as
oscilações da carruagem, obter a mais recta vista sobre a sua aldeia.
Há um magnetismo que só o fogo tem. São as suas cores,
vividas, preenchidas, perfumadas, gordurosas. Um incrível espectáculo para os
seus olhos que o bebiam sofregamente como se a sua falta os afogasse. Escondido
entre os seus pensamentos, havia o desejo que o pequeno incêndio miniatura
desenhado por entre as suas pestanas pudesse crescer. Crescer tanto que lhe
acendesse o corpo, que lhe envolvesse o corpo, que a possuísse horas sem fim
até ficar domada. Poder sentir esse ardor, esse calor, essa raiva, essa febre,
toda ela consumindo-a, toda ela sendo consumida e consumada.
Preenchida. Sobretudo preenchida.
O incêndio vai-se afastando. Por entre o cântico crepitante
das chamas, começa a ouvir os sons das pessoas gritando em pânico. Dir-se-ia
agora triste, com uma lágrima escorrendo no canto do olho. A minha aldeia,
soluçava, a minha pobre aldeia. Então despertou, olhou à sua volta e teve a
noção parcial de quanto tempo tinha passado a observar o maravilhoso espectáculo
do fogo. Esqueceu-se por completo que era a sua aldeia, com os seus entes
queridos, com os seus espaços comuns, com os seus lugares a arder.
Ficou tempos olhando para si no espelho, sentindo nojo por
esse monstro que se lhe tinha apoderado do corpo. Pegou numa faca, olhou para a
sua perna e pensou ‘não voltarás a venerar o fogo’. Enquanto desenhava as
letras, a dor excitava-a, sentia-se a ser rasgada como da primeira vez. A dor
que ela julgara libertação, a dor que julgara nova porta, a dor que fechara
porta ao fogo.
Depois de inscrever o seu número de presidiária na perna
julgou poder ser feliz na sua catividade. Tapou as janelas da sua cela.
Descobriu livros. Passou tempos infindáveis a ler tratados morais. Aprendeu comentários
inteligentes e eloquentes sobre a loucura ocorrida em Sodoma e Gomorra. Quem a
visse, nem conseguiria descobrir a sua origem.
Mas uma noite, quando a mais pura lua se erguia entre as
nuvens, uma luz pálida esbatia-se-lhe pelo corpo todo nu. Entranhou-se-lhe na
carne, perscrutou as barreiras, correu entre as sentinelas do costume e da
civilização. Deslizou como uma serpente entre as suas antecâmaras e libertou a
fera.
Uma vez reacordada, pediu a noite para se fazer véu, mais
que véu passagem subterrânea até ao fogo. Aproximou-se tanto dele que já gotas
fartas de suor escorriam por entre o seu corpo. Seus olhos secos mas vivos, seu
nariz entupido pelo fumo, seus pés sujos de cinzas, todo o seu corpo eram papilas
gustativas extasiando-se e gritando elegias ao prazer. A sua pele pálida e
morta redescobriu alimento e comendo o carvão do ar, foi enegrecendo ganhando cada
vez mais a cor da própria noite. Assim, abria os braços, sentindo o calor, a
cor, o carvão, o cheiro a preenche-la, a liberta-la esquecendo-se por completo
de tudo aquilo o que tinha aprendido nos livros da prisão, que era a sua aldeia
que ardia, que eram inocentes as vozes que as chamas calavam, que era pecado
venerar o fogo.
Do alto da minha esterilidade disse-lhe: Acabarás como uma
estátua de sal, pobre mulher de ló. Então, virou o olhar para mim e cravou-me
no peito como uma estaca o meu próprio vazio. Insuportavelmente asfixiando-me.