domingo, 24 de maio de 2015

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escrevo-te para falar da fome
                  lembras-te?
dos automóveis a correr para os muros
de te debruçares para apanhar os restos do chão
como se eles pudessem tornar as tuas olheiras mais escuras

era uma cidade construída para te obstruir os cabelos
para impedir que as lágrimas seguissem o seu rumo
até à nascente do precipício
queríamos todas as infeções saciadas
com a sua ração servida a horas
para as periferias da civilização

terá sido para isso que criámos as reproduções?
para termos onde alojar os nossos vícios
tirar os filtros, pisá-los no chão
desaprender a Arte do tabaco
de compreender a vida pela mortificação
quando eramos adolescentes de lábios carnudos
a desejar ser penetradas por falos cheios de areia

mãe porque eu vejo tudo tão turvo
apesar de estar tão sóbrio
mãe todos os meus pesadelos são grotescos
como se quisesse lembrar do que ouvia do mundo
quando dormia na tua placenta

agora continua escuro em meu redor
por isso nem imaginas as danças que faço com os braços
símbolos que descobrem ser pássaros
muito antes de terem ficado esfomeados
por terem proibido o espúrio na metrópole
ou as mãos terem sido obrigadas a cerrar-se
para o poder nos ritmar o mea culpa

como é que te esqueceste, Frederico, que a dúvida é sempre uma vontade de resposta
que a descrença é o mais puro idealismo
envenenaste uma geração toda só com o olhar
e pela forma como o teu sobretudo absorvia a luz do sol
dir-se-ia um tentáculo voraz, insaciável, contorcendo-se
ou apenas costura de um fundo silenciador do grito da queda

a concretização da contemporaneidade
multiplicou o ruído incessante do falar comum
por isso andávamos anestesiados pelo som desse bordão grave e místico
pelas ruas da cidade a tropeçar pelas calçadas
deslizando pelo vómito das cocotes
rindo-nos de tudo

se o orpheu teve o ópio
nós descobrimos o escárnio

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