segunda-feira, 20 de julho de 2015

3

Aqui já morou gente
vozes a roçaram-se umas nas outras
Já o asceta disse:

- Um mundo cruel pede uma Arte cruel

terça-feira, 30 de junho de 2015

2

a noite transbordou as pedras obscuras
o miasma agora é caro para os solitários
por mais que ele chie à passagem dos comboios
por mais que eles espalhem clarões sobre objetos inimagináveis
para quem aprendeu a pulsação pelos livros

há quem deixe escorrer pelas mãos
segredos nunca confessados sobre a falta do frio invernoso
porque a miopia das cicatrizes obsta à nitidez necessária
para coser de novo o significado das membranas perdidas

as paredes dos prédios tremem de uma ânsia doida
de quem está enraizado há décadas na mesma circunscrição
murmuram preces na catedral dos nossos sonhos
para que as madrugadas adquiram finalmente uma propriedade salvífica

o vento engendra a sua composição de jornais rasgados na rua
sem contudo enunciar nenhuma narrativa sanatória
por mais que esbarrem sobre os noctívagos desterrados
quando andam à procura da promessa de carne
dos venenos que antes se avolumavam nos cantis

os mamilos eriçam-se mas por defesa
porque já ninguém quer os calafrios do inesperado
o turbilhão da incógnita a rejubilar nos signos
um voo rasante à descoberta dos destruidores dos arquétipos
o culto paradoxal da iconoclastia

luz já só queremos luz
mas as íris desapareceram dos dedos
e os trocos que foram colhidos por lavoura ordinária
já não pagam boleias para o descanso mortífero das casas

ficamos perdidos à procura das tomadas com a língua
pois é certo que em nada fomos preparados para esta miséria
para tanta coisa tomar pela mão o nosso interior
pois já nem reconhecemos a mão que vemos a esfaquear
a promessa de calmia encarnada no corpo amado

imitamos o bolor a alastrar-se na parede
como a sombra imita os gestos sobre o pano
assim escrevemos cartas públicas a reclamar brancura
e o silêncio  transforma-se no melhor ópio
para quem já só quer crepitar ao observar a metamorfose
do oriente circense sobre os náufragos
cantados por um poema épico sem qualidade
à imagem do caos a escorrer pelas bordas dos contentores

a nódoa é agora a única metafísica crível

os nossos olhos são magros em secura
já nada nos faz verter lágrimas
tal já é a indiferença perante o nosso corpo
por já termos obrigado ao suicídio até ao cartomantes benévolos
que pagamos com os dentes das nossas presas inocentes

somos um rio que nunca arrebentou as veias
mas a cidade já toma por identitária o nosso cheiro
por lhe lembrarmos os seus becos de juventude
e promessas difusas de particularidade sobre a urina da divisão do trabalho

mas tudo nos invade a ponto dos peixes ficarem andrógenos
de os canibais se aborrecerem de tédio
pois a revolta é em tudo harmónica
as vozes perderem o chão erigido pelo bordão
por isso ficamos em queda livre sem ter uma única corda irrepetível
no meio da proliferação obtusa de um mesmo
tão podre e vazio por dentro
que a reprodução massificada triunfa sobre o fogo irrepetível

assim as cinzas serão indiscerníveis
por mais que a poesia prometa obituários
ou qualquer tipo de outra ordenação cuidadosa
e o profeta terá razão por uma via ironicamente corrosiva
quando anunciou o fim da norma e de toda a propriedade

o nosso enjoo é a prova que se tudo tremer será insuportável



domingo, 24 de maio de 2015

1

escrevo-te para falar da fome
                  lembras-te?
dos automóveis a correr para os muros
de te debruçares para apanhar os restos do chão
como se eles pudessem tornar as tuas olheiras mais escuras

era uma cidade construída para te obstruir os cabelos
para impedir que as lágrimas seguissem o seu rumo
até à nascente do precipício
queríamos todas as infeções saciadas
com a sua ração servida a horas
para as periferias da civilização

terá sido para isso que criámos as reproduções?
para termos onde alojar os nossos vícios
tirar os filtros, pisá-los no chão
desaprender a Arte do tabaco
de compreender a vida pela mortificação
quando eramos adolescentes de lábios carnudos
a desejar ser penetradas por falos cheios de areia

mãe porque eu vejo tudo tão turvo
apesar de estar tão sóbrio
mãe todos os meus pesadelos são grotescos
como se quisesse lembrar do que ouvia do mundo
quando dormia na tua placenta

agora continua escuro em meu redor
por isso nem imaginas as danças que faço com os braços
símbolos que descobrem ser pássaros
muito antes de terem ficado esfomeados
por terem proibido o espúrio na metrópole
ou as mãos terem sido obrigadas a cerrar-se
para o poder nos ritmar o mea culpa

como é que te esqueceste, Frederico, que a dúvida é sempre uma vontade de resposta
que a descrença é o mais puro idealismo
envenenaste uma geração toda só com o olhar
e pela forma como o teu sobretudo absorvia a luz do sol
dir-se-ia um tentáculo voraz, insaciável, contorcendo-se
ou apenas costura de um fundo silenciador do grito da queda

a concretização da contemporaneidade
multiplicou o ruído incessante do falar comum
por isso andávamos anestesiados pelo som desse bordão grave e místico
pelas ruas da cidade a tropeçar pelas calçadas
deslizando pelo vómito das cocotes
rindo-nos de tudo

se o orpheu teve o ópio
nós descobrimos o escárnio

domingo, 8 de fevereiro de 2015

XXIII

Amava-te pela tua senilidade
na dança de quem usa a bengala como detetor de minas
à procura de encontrar nas raízes
uma geração louca esfomeada que para conquistar terras a cheirar a mato
componha odes para violinos com facas sobre os tendões

tu esmurravas a manhã mansa porque eras o único crédulo
uma multidão assertiva e contestária lá fora
era apenas ruído
os teus olhos vermelhos a cilindrar a madrugada
tinhas uma outra economia para as coisas de trazer por casa
e os gatos pareciam abácos com crânios de palavras

era escuro o lugar onde fumavas
a procurar entre os bafos expelidos algo onde te agarrar
para te elevares para lá do quarto
para lá dos incêndios que ninguem queria engolir
muito embora escrevesses poemas com espátulas.

A solidão das coisas caía às gotas na tua sala
mas o charco não fazia um espelho aos passageiros
havia demasiadas ruas proibidas, outras tantas fechadas pelo Estado
mas tu ainda mostravas uma violência sã
não parecias desejoso de palmadas no dorso
tu que querias morder com um cão danado
continuavas à espera nas Urgências
como o fósforo mais sensível da noite