segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Agora, Agora

Até podiam ainda existir
teclas sãs na máquina de escrever
mas nós rasgamos os pulsos para desencravar as viciosas
e no seu tossir velho            enferrujado             ritmam um laborar interminável
contra o abismático precipício da escrita.

Miramo-nos nessa poça narcísica
Borrão confuso que afirmamos lúcido
Ter tão claras formas e significantes traços
Crentes tão ferverosamente numa identidade

Mas o atento leitor é como inversa Circe
Devolve progressivamente a ideia à forma
Sendo claro porque é que o papel a ser higiénico
Tem sempre por fim o autoclismo.

E regressamos a casa para que carpideiras pousem nos ramos
Das cicatrizes que carregamos nas costas
Onde o mestre da diligência é o pai
Cujo reconhecimento queremos conquistar pelo martírio.

domingo, 16 de novembro de 2014

XX

Confio palavras como sapatos a uma imensa cidade de pensamentos
Coroam-se marcas de pegadas em ruas sem passadeiras
E não há medo de enveredar por todas as vias
Nenhuma será errada ao confronte com o atropelamento
Porque queremos violar segredos contra as têmporas das cascas
Esmurrar-lhes verdade sobre a persistência dos antidepressivos.

Há tanto tempo que são domesticamente chocados
Pelas nossas mães enquanto falam da telenovela do nosso passado àureo
Com todos os detalhes nobiliárquicos sobre a origem da família e do seu triunfo sobre a selva.
Mastigamos suavemente a doçura com que nos chamam bárbaros
Por termos habitado o lado de dentro da chama
Entrado pela estreita portinhola deixada por versos mortos
Dos quais escolhemos ser altares paleontológicos

Os corvos cagam-nos em cima
É o mesmo desdém fatídico com que os turistas fazem poses por cima de nós
Expondo as nossas partes íntimas para as suas câmaras fotográficas
Trazendo para casa uma estranha forma de cumplicidade entre os seus sorrisos
Grandes positivistas apostos em ter descoberto toda a dinâmica da evolução da civilização
Sem nunca terem provado a carne da melhor prostituta de Camden Town.

Estaremos para sempre nesta fornalha
alimentada pela propulsão do monóculo à luz solar
sussurrando entre os ouvidos os tempos do escuro
em que fazíamos sexo felino pelas sombras das avenidas
sem livrarias a venderem anuários científicos como jaulas.

Nós que fôramos completamente compreendidos porque incompreendidos
Mas que ao acordarmos no colete-de-forças da curiosidade desses pedófilos
Temos ataques de raiva e blasfemamos até a poesia por nos ter denunciado
Porque é contra a nossa natureza que nos erguemos
Mas não se enganem
Estamos completamente sãos.

sábado, 8 de novembro de 2014

Condição Humana

Ao chegar a um Quintal dum amigo, ele convidou-me para ir observar um raro (para ele) fenómeno. Apresentou-me três galinhas e um pato. O pato segundo ele fazia tudo igual ao que as galinhas faziam, empoleirava-se nos mesmos sítios, comia a mesma comida, até lhes tentava imitar o cacarejar, muito embora tivesse lugar próprio, ração própria e grasnar também ele próprio.

- É por só ver galinhas à volta que o pato pensa que também é uma galinha - convidou-me o meu amigo a interpretar
- É exactamente essa a perversidade do termo 'condição humana' - rematei

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

XIX

Era realmente desesperante passear pelas ruas
Ver tantos corpos pendurados nos lampiões

Alguém me dê a mão disse o canibal

Mas o individualismo permanecia até na recusa a ser estrume

A revolução social tinha sido sobretudo motivo de lepra
Onde toda a gente sabia de cor uma canção
A liturgia era única coisa ainda sacra
Ninguém queria afogar-se na solidão

XVIII

Cidades a arder
Cadelas a lamber desenfreadamente as nossas mãos cheias de petróleo
Se soubessem que as suas mães lá moravam
Não recebíamos tantos broxes

XVII

O vómito é apenas uma forma de procurar as moedas nos bolsos
As unhas com sangue morto esgravatando o escuro dum vazio
Não importava para o repúdio dos portadores de moleskines
Se era alheio ou próprio

O esófago inflamado também
Pela pornografia gratuita das histórias dos nautas
Nós que estávamos amarrados a um nojo pelos tomates
Reincidentes confessando a crianças o nosso crime
Obrigados a participar numa política pública de saúde
Onde não era absolutamente claro se a psicologia inversa
Não é a responsável pelo pecado.

Olhávamos sôfregos para as mentes brilhantes
Esperando acordar de manhã com uma salvação na caixa do correio
Nem que fosse paga a suaves prestações por uma subserviência consentida

Mas havias nos seus olhos uma assustadora cor dourada
Estranha à prosódia do respirar das árvores
E restava-nos a conversa com os ratos mortos no chão
Que nos confessavam não terem há várias décadas
Algum fruto podre na terra

Estávamos famintos
Julgámos que havia paternalismo no terem criado contentores sanitários
Por isso alimentamo-nos das estantes e do todo o lixo que lá encontrámos

As nossas mães choram a ver os nossos antigos retratos


Mas não foi só isto que nos levou à bulimia