Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos
espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida.
Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de
tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se
itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na
sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas
dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido
de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um
primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo
reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo.
Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser
a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho
reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo.
Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa,
delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam, já toda a sala é uma caverna onde a identidade
do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam
e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o
seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de
barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a
destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as
fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de
pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi
alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então
finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma
mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.
Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala
está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os
seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica
mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos
tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são
intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o
contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as
outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda.
Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o
inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada
e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se
os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos,
meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados,
adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um
pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo
discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados,
respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.
Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de
si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto
voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer
chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália.
Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho
engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato.
Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo
caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar,
também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas
metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas
os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados.
Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores,
escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.
Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).
Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu
catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo para de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.