A vida fez dele muito mais do que uma alma penada. Não era apenas alguém torturado por dilemas remanescentes de um passado perdido no tempo. Era também alguém que levantou a bandeira branca. Paz, pediu, paz não aguento mais. Quando o estrangulamento ameaçava retirar-lhe o último fôlego de vida descobriu o sangue.
A vida fez dele muito mais que uma alma penada, ensinou-o a encontrar no sangue, no sorver do sangue, a tranquilidade, a moleza, o quase refúgio de si próprio. Se Deus o fizera alma penada, alma errante irresolúvel logo nunca morta, também o fizera vampiro, ser capaz de embriagar a sua dor.
Percorreu todos os caminhos infames, sorveu o seu corpo até ser apático, apagado e solitário. Sorveu o tempo até ser niilista, incrédulo e fatalista. Sorveu tudo o que pode toda a sua vida até que chorou. Quando chorou, chorou toda a sua vida. Nesse dia à habitual língua que se torneava erógena em volta dos seus caninos deu a primeira dentada.
Chorou todos os caminhos infames que a procura de sangue o obrigou a percorrer. Chorou todas as mentiras, todas as ilusões, todas as traições. Porque nesse dia alguém abriu a porta inesperadamente e ele estava de dentes em punho a sugar o sangue dela.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que por mais que julgasse estar a viver com ela num paraíso, por mais que o futuro pudesse iluminar o avante, era o passado que o dominava ainda.
Nesse dia entendeu o monstro que era. Entendeu que a última esperança contra o apocalipse estava a ser violada por uma alma penada em busca do seu refúgio. Esse foi o dia em que a afastou dos seus dentes.
Nunca teve tanta sede de sangue como nesse dia. Soltou-se das amarras que transportou enquanto se iludira, enquanto pensara poder ser quem não era. Foi um jubileu de tudo aquilo que tinha acumulado dentro de si.
Nunca teve tanta sede como nesse dia em que se reencontrou, vivo, ágil, elegante. Todo o seu corpo havia descansado o suficiente para suportar nova campanha. Tinha rejuvenescido, ganho carne, cor, graça suficientes para iludir vítimas com total facilidade.
Mas se alguma coisa houver de original nesta história foi que não foi preciso um drama convencional escrito com cancro, sida, overdose para ele perceber. Não foi preciso ter a prova acabada que o sangue não lhe traria sossego para rejeitá-lo. Bastou ela olhar-lhe de novo com os olhos de quem não vê um monstro.
E a única parte original nesta história foi que ele abriu, abriu de repente a porta do seu passado e do seu presente, mostrou-se longe de medo quem era e de quem fora. Atirou-se para a luz, para a sua luz, para a luz que mata os vampiros. Morreu para sempre para ela quando ela viu porque ele nunca se dera à luz, todo o monstro que lhe escondera. Nesse dia, enquanto a luz o desintegrava e o corroía o corpo, olhou para ela com um sorriso nos lábios, com um sorriso de quem conseguira por um dia estar à altura do seu olhar.
Romeu fora uma personagem de romance, por escolha sua.
domingo, 5 de junho de 2011
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