domingo, 4 de outubro de 2009

Carlos

A casa era cinzenta e fria. Nas paredes, grandes nódoas de sujidade lembravam passagens de “húmus” de Raul Brandão. Parecia que ano após ano, as nódoas cresciam e perdiam o seu carácter um tanto ou quanto circular e ganhavam formas excêntricas mais parecendo poços de sangue. Onde em tempos alguém vira a obra de um notável arquitecto, agora via-se o bastião do capitalismo com as suas vigiadoras janelas negras impermeáveis a vista.
Em busca de falsas meriotocracias concederam-me o visto para entrar. Quando entrei vi todos os símbolos da humanidade pendurados nos candelabros. Vi Jesuses, Budas, Marxes, Proudhons, todos eles de olhos revirados, com moscas a comerem, numa lentidão eterna, seus corpos putrefactos. Havia ate quem lambesse do chão o sangue que ainda escorria de alguns corpos ainda frescos. Havia ate quem descansava no chão olhando para um longo orgasmo misturado com sangue derramado.
Hora a hora, surgia uma súbita multidão, trocavam-se os treinos, quem limpava as espingardas agora ia atirar ao alvo, quem atirava ao alvo ia a catequese, quem ouvia a catequese ia a torre de controlo, quem saia da torre de controlo ia limpar as espingardas. E muitas outras actividades engendravam-se naquele átrio.
Sabia-se que não era esta a casa forte do Exercito. Que esta era apenas um filial, mas que daqui saiam muitos para a Capital para grande euforia e orgulho dos nossos. Ministros, dizia-se nos corredores, ou gestores, na melhor das hipóteses. Talvez, ate a Deloitte, insistia-se, mas mal não ficaremos, isso esta garantido.
Uma vez, no armazém deparei me com a bíblia profanada, toda cuspida com frases a vermelho gritando as mais diversas injurias, e n’O Capital constava todos os ataques contra quem não consentia o direito a propriedade privada como mérito. Todas as anteriores figuras eram consideradas contra-revolucionarias e tinham sido retiradas, nos frescos descobriam-se corpos sem caras, nas paredes, onde outrora havia estátuas de homenagem a grandes figuras da Humanidade, um vazio. Eram inúteis, não precisavamos mais deles.
Quem passeava pelos corredores via luzes acesas debaixo das portas. Ninguém sabia ou imaginava que indivíduos eram aqueles que noite após noite trabalhavam no seu gabinete na defesa de nos todos. Mas recebiam o melhor ordenado possível, bem como as honras de Estado por o garantirem na vanguarda do pensamento moderno.
Os alunos eram analfabetos. Pouco sabiam da Historia e dai nenhuma elação que os conduzisse a exigir direitos ou prosseguir algo. Pouco sabiam, agora pensando, de filosofia por isso nenhuma elação tirariam mesmo que quisessem. O sistema concedera-lhes um voto, mas tirando os que consideravam inconsequente para a sua vida futura onde questao era comprar ou nao o bm, os que restavam não se preocupavam em dar-lhe profundidade. Enquanto houver um bm há um feliz, e outros quatro felizes com a possibilidade de o ter.
Vi expostos, esses sim com adorno e requinte, tratados nas paredes. Os tratados que sentenciaram os meus antepassados a fome, agora revistos e actualizados. E nas aulas, esses sim com fulgor e veemência, defendidos: os pensamentos, onde pessoas são enumerados como números ou como variáveis plenamente variáveis. E nos exames, os alunos sentenciarem-se, admitirem a lei da oferta e da procura bem como outras tantas ofensas a sua integridade e dignidade, e dessa mesma forma admitindo-se como possível “excesso de oferta de trabalho” ou “desemprego necessario”. Em cada ponto da casa, via-se alunos escreverem, fazendo exercidos preparados para os entreter fora das grandes questões, assinando cegos o contracto do seu suicídio. E o que fazer das pessoas que se sentenciam? Quem serás tu ou eu para te julgares a cima deles, e com a capacidade de julgares o que deveriam eles procurar ou fazer da sua vida? Queres fazer a revolução por eles mas contra eles? És muito estúpido Carlos.

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