sábado, 15 de outubro de 2011

Maria

Morre apunhalada como César a minha Pátria nas minhas mãos. Esfaqueada por seus filhos, sangrando entre o desgosto dessa traição e o medo da morte. Abraço-me a ela, choro fervorosamente com ela, enquanto o seu sangue me unta e se funde nas minhas lágrimas. Neste um rio só de sangue e lágrimas navegam naus transportando para a imigração tudo o que sonhámos os dois. Todas as promessas, todas as ideias que cerramos em divisas com que cunhamos o nosso corpo. Todas as aspirações, todos os sonhos que diletantes especulámos em noites frias ao som das ondas. Houve uma noite inclusive, que tivemos a nítida sensação de ver embater contra a costa uma onda vinda directamente de uma Nova Índia e sentimos sobre a lava que caíra no nosso corpo um espírito cunhando o seu nome com uma faca na nossa carne. Sonhámos um dia correr nus, mostrar ao mundo aquilo que somos, as divisas que somos. Existir é um manifesto, é um grito de ipiranga de um conjunto de mandatos interiores, quem não os tem não existe. Quem não os tem são os ‘homens-consensuais’, os ‘zés-ninguém’ de William Reich, os homens a quem não lhes conhece uma ideia, uma direcção a não ser a ganância do poder. Andam por aí, circulam como vermes por entre as frinchas do chão, por entre as paredes dos edifícios. Pertencem todos a um exército direccionado por alguma figura obscura que na sombra os dirige atirando-lhes migalhas. Em terra de cegos, quem tem olho é rei. Ela ri-se, ri-se da figura ridícula que eles fazem, todo desespero por que lutam por meras migalhas. Mas eles sabem que ela não gosta que tenham ideias e que pensem, por isso trocam palmadas nas costas um do outro e dizem ‘tu serás o próximo a subir, tu foste muito consensual e moderado’, num gesto de camaradagem que logo dissolvem quando se vem ultrapassados acusando o outro de ser radical, controverso, extremista. A Pátria que os adoptou, que os educou, que lhes deu a língua e por conseguinte a civilização, que julgou neles ver o seu sustentáculo e por conseguinte as suas armas, hoje viu-se apunhalada, apunhalada por todos por isso por ninguém, caída e desamparada, agonizada nas minhas mãos.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sílvio

Dois pequenos cometas voam no meu quarto escuro, agitam-se e amam-se em espiral, mas numa espiral íntima, próxima, quase que se raspam, que se apagam, quase que avançam um, sobre outro, invadindo em tangente o espaço próximo do outro, e, ao invadir, rouba certa parte da outro, rouba certa parte da cor do outro, assim, sucessivamente assim, os dois cometas suicidam-se, perdendo vertiginosamente a sua cor inicial, anteriormente antagónica, mas encontrando uma cor neutra entre os dois, um equilíbrio, mais que um equilíbrio, uma morte, uma morte para o qual correm desafogadamente, correm conscientemente, correm. Quando as duas cabeças ovais embateram uma na outra, houve a explosão de um astro, e choveram do tecto onde antes dançavam os dois amantes, lágrimas de alegria, roxas.
Nas paredes do meu quarto quarenta mil olhos de morcego acordam. Vermelhos. São os olhos de vinte mil pontos que ganham vida, obstinam-se por vielas claramente delineadas nas suas cabeças, embatem uns contra os outros, esbatem uns contra os outros, assemelham-se a glóbulos vermelhos por veias, assemelham-se a um organismo a ganhar vida. Furo um dos glóbulos com os meus dois dedos, causo uma ferida que ajudo a abrir com as minhas mãos, uma seiva transparente me invade a superfície do corpo, finalmente consigo abrir o suficiente para por a minha língua. Entro na mente desse glóbulo, vejo as suas pernas primeiro, os seus braços, consigo ver claramente os contornos da rua que o vi caminhar e que antes me eram completamente invisíveis. Sinto uma extrema necessidade de ir algures, sinto um peso pleno de uma memória que me rumina, sinto uma indiferença estúpida perante o jasmim que me serpenteia no nariz. Então estanco. Caio no chão. Acordo no meu antigo corpo, os meus lábios sangravam cheio de farpas de madeira e já poucas gotas roxas sobravam no chão.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Neuza

Se tantas mulheres feias reproduzem e dão outras mulheres também elas feias mas ainda com capacidade de reproduziram, porque é que Deus se deu ao capricho de ir roubar ao mais negro óleo do crepúsculo para te picar como quem desenha em tinta-da-china o contorno dos teus olhos, fazendo uma cadência cada vez mais densa e escura à medida que se aproxima do mar fino de uma bruma de marfim de que são feitos. Passaria sentado sobre essa mesma margem, baloiçando os meus pés nessa paz de leite, tempos sem fim anotando todas as histórias que habitam na ilha em frente de mim. Consigo ver essa gueixa frígida que se deixa possuir por um homem corpulento, a forma como o sangue escorre pelos seus lábios vaginais frio e ácido, a transformar-se num canto que expele com o fumo do seu tabaco quando tenta tirar do seu corpo o cheiro imundo da besta que saíra deixando a nota boiando sobre esse rio feito canto feito história. Vejo simplesmente o olhar desafiante com que um heroinómano enfrenta como um toureiro a morte, o seu jeito provocador enquanto se deixa invadir pela morte saboreando cada pequeno resíduo de uma tampa de um iogurte como se risse na cara da morte, lhe mijasse em cima num mijo negro de prazer orgástico da droga. Ouço a história de todas as tuas pequenas bonecas de menina, a história de como cada uma te foi levada para parte incerta num terreno mítico vulgarizado por memória. Contas-me como cada essa pequena boneca são parte integrante do que és hoje, como tens os braços de uma, os ombros de outra, como te construíste enquanto mulher sem nunca perder a tua feminidade e a tua esperança com que lhes cantavas. Contas-me também como encontraste os homens vulgares, cinzentos, esterilizados emocionalmente por uma sociedade que os ensina a serem como bestas para copular por imperativo fisiológico. O amor, perguntas-me, onde está o sentimento? Será a revolução sexual a reacção sexual? Será a banalização do sexo o seu maior retrocesso? Assim descubro o valor do íntimo, nesse meu sonho intimo que descobri a escrever meia página sobre os teus olhos.
Assim brilha uma névoa no teu corpo, os raios de sol esbatem sobre teu corpo dando lhe os laranjas-fogo de um por do sol espelhado sobre o mar. Soltam pequenos tentáculos, rios ainda mais finos de luz provenientes do lugar onde se esbate a luz, a luz, no teu corpo, é como um animal vivo, um ser pernicioso que se expande enquanto sussurra cânticos, ouço o ‘Im Anfange schuf Gott Himmel und Erde’ exactamente como Haydn ouviu na sua cabeça quando pensava na sua obra. Sinto o amor impossível de Camões por sua cativa ou a mórbida frase de Cesariny ‘em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro’. Em todas as ruas te perco, em todas as ruas te encontro, sigo pelo sinuoso caminho pedereste, absorvo-me cada vez mais em todo o seu detalhe e sinto que te perco, sinto que mais não te vejo, que perdi o caminho ao esmorecer-me bacoco por um mero passarinho caído do ninho. Como não me poderia perder por todo o mais ínfimo recanto também? Solto a resolução, tiro o binóculo, vejo te toda por inteiro de novo. Miro-te com o medo de quem olha Cleópatra por isso fujo. Mergulho de novo nesses caminhos sinuosos no meio dessa floresta de trigo, procuro-te, procuro as tuas histórias, procuro histórias, procuro pessoas, procuro personagens, procuro paisagens e paisagens mas só vejo trigo e trigo e trigo. È verdade que é um espanto ver a luz, mais uma vez, a ser vento, a curvar toda a ceara de uma vez e que é um delírio correr campos e campos sem fim apenas com a mão estendida passando a mão hirta pelo trigo. Assim descobri o que era íntimo, o integrante físico do íntimo, o espaço vital do teu íntimo quando julguei artista narciso sentir-me tocando a tua íris no papel.