terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Joao

O joao. O joao gostava de fumar. Tinha 14 pois, era cedo talvez, mas o Joao gostava de fumar. Havia algo de magico no cigarro que fumava a Noite. Sozinho, com o fumo subindo pelas escadas picotadas, havia alguma especie de comunicacao transcendental com um instinto primordial. O de fumar a Noite. No silencio da Noite. O unico que o deixa ouvir o puxar do cigarro, e o adormecer dos pulmoes com o cair do nevoeiro. O unico que permite ouvir o corpo virgem mais uma vez entregar se, e o fumo amante ou leito aconchegar o Joao.
O Joao estava sentado mas nao estava sentado. Os olhos repousavam sobre as estrelas que eram campos. O peito sentia o vento que era brisa. Sentado, mais uma vez no seu terraco, Joao fazia a unica coisa que o distinguia de alguns, nunca estava. Possuia uma impar e incrivel capacidade de imaginacao, mas nada que tenha que ver com o sentido usual de imaginacao, a imaginacao de Joao nao era nitida, o Joao nao se imaginava em campos, nem tao pouco era nitida auditivamente, o joao tinha pessima memoria auditivia e nunca reconhecia a voz de ninguem ao telefone. O joao possuia pois uma diferente sensibilidade na planta dos pes, que o fazia adorar andar descalco sobre o asfalto, e uma sensibilidade conceptual anarquica.
Os mundos de Joao nao tinha personagens, nem tao pouco tinham um curso, as personagens mudavam de forma, intelectual e fisica, e os eventos mudavam de fim, com ou sem. Com que o Joao gostava de brincar era com o mundo e a sua organizacao, imaginava homens a venerar um deus crucificado antes num rectangulo, e como toda a arquitectura a sua volta se mudaria, e depois, imaginava como seria se o passado mudasse a cada cinco minutos que passasse, como seria se passasse cinco minutos e voltassemos a estaca zero, e o deus agora fosse crucificado numa roda, e agora o eterno era feito de experiencias aleatorias, de esbocos de cinco minutos. Toda gente achava que as brincadeiras de Joao nao faziam sentido, mas ele inventava novas sempre, havia sempre outra grande lei do universo que surgia que fazia mudar radicalmente tudo o que se tinha como dado.
Tambem por isso ele gostava do cigarro, o cigarro propulsionava o para um outro universo, onde as suas experiencias sensiveis mudavam, dada a ligeira tontura que ele lhe provocava. O Joao gostava disso, e para ele essa era a clara evidencia que ele exisitia. Nao o cigarro, mas ele proprio.
O seu pai era cego. E rapidamente desde pequeno descobriu que as coisas nao precisam de fazer sentido. Nem tao pouco tem de ser assim. Era o unico miudo da creche que tinha um pai cego, e isso bastou lhe para entender a diferenca. Isso mudou radicalmente a sua forma de ver o mundo, o facto de ter uma educacao tao saudavel e digna como qualquer outra crianca, fez lo ver como as concepcoes e os preconceitos da sociedade era estupidos e nao faziam sentido nenhum. Como era estupido dizer se que os gregos sao ridiculos por acreditarem em mulheres que nascem da cabeca dos pais, e o Joao chegou a esta conclusao muito cedo:gostava de gozar com os colegas catolicos dizendo lhes que acreditava piamente nos deuses egipcios.
O Joao nao era catolico, nem tao pouco tinha mae, nao era um rapaz por isso amargado, triste. Nao, o Joao sabia que a sua afirmacao como pessoa e nao como uma mais invencao mirabulante sua, vinha exacatamente do tabaco.
O Joao nao existia para os demais, porque o Joao esquecia se que realemente era uma invencao mirabulante. Para os outros, o Joao era quase uma manifestacao do sexto sentido, porque havia um lugar na sala que nunca podia ser ocupado, porque havia uma resposta que era dada na aula sem se saber de onde, porque alguem estava na fila da cantina antes de nos. Pois era, o Joao nao era captado pelos radares dos outros, era raro darem por ele, porque ele tambem nunca estava. Ninguem sabia quem ele era, apesar de uma colega dele se lembrar de que no jantar de finalistas um rapaz muito simpatico sorriu lhe duma forma encantadora.
O Joao nao era giro nem feio, nem jogava bem nem mal futebol, por isso, as suas colegas, e os seus colegas nem reparavam. E para o Joao isso era perfeito, assim podia olhar para eles, e servir se deles para as mais fantasticas fantasias. Todas as formas de relacoes sociais eram alteradas por ele. Imaginava se os simbolos e papeis sociais se invertessem. E era tao giro imaginar os rapazes pacoviamente puritanos e as raparigas prevertidamente sexistas.
Mas o Joao nao gostava de ficcao cientifica, para o Joao, a ciencia exacta nao fazia sentido dada a sua unica aplicabilidade a este universo, o Joao gostava era de poesia e arte. Quando sairam as notas dos testes de apetencias vocacionais, o Joao teve pessimas notas a tudo, preocupava se apenas em tirar a positiva para depois poder aproveitar o silencio da sala para imaginar.
A imaginacao nao da emprego Joao. Se nao gostas das ciencias, e es burro comocaralho vai antes pa humanidades, pode ser que consigas passar se nao tiveres matematica.
As humanidades nao da emprego Joao, eu ate acho que tu podes fazer matematica, vai para economia, la arranjas emprego.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Antônio


O Antônio até queria ser professor de Inglês, dizia ter jeito para as línguas, gostava de falar com outros povos, e até nutria alguma auto-estima por saber falar tão bem Inglês. Mas fora expulso da aula de inglês. A professora, quarentona no peso e na insegurança, tinha bastantes dificuldades em manter a disciplina na sala de aula, então, qual anarco-terrorista, apostava em repentinas explusoes de autoridade e atentados aparentemente descoordenados. Aguardava, assim, conseguir manter o magno respeito na sala de aula expulsando à queima-roupa.
O Antônio já sabia que as aulas de inglês eram uma seca por isso mesmo, não gostava daquela forma desiludida que uma anarco-terrorista vê o mundo, sempre a queixar-se, sempre ameaçar, e até recorda de bom agrado as maldades que lhe faziam uma vez que, para além de narcista, o Antônio era orgulhoso e não gostava de se ver a ser tratado como um jovem delinquente.
Mas fora expulso da aula de inglês. Nesse dia, o sol raiava, a relva verdejava, e os mais novos jogavam futebol no recreio: resolveu dar um passeio. Uma vigilante, nova no serviço, viu-o a passar. Para malgrado do António era bastante mais alto que os restantes. E estava um dia tão bonito...Chega cá, que andas a fazer? Passeio. Passeias? Sim, passeio, não vê? Mas, estás no intervalo? Que eu saiba estar no intervalo não é condição necessária para passear…
Chegou isto para ela pegar nele pelo pescoço e levá-lo à madre contínua superior, suprema autoridade em assuntos que tocam no que é que um aluno deve estar a fazer a uma determinada hora. Mas que porra, logo no primeiro dia de trabalho e tenho logo de lidar com um miúdo que se balda as aulas?
Chegado à madre contínua superior, a sentença foi deliberada, António não estava a faltar as aulas, tinha sido pois expulso, e desta vez seria melhor castigado, não é que o estúpido em vez de ter ficado feito cãozinho abandonado e arrependido à porta da sala de aula a choramingar para entrar, tinha resolvido ir dar um passeio? Quem é que este gajo julga que é? Deve achar que as coisas se fazem assim, tipo está um dia bonito, a relva esta verde, há miúdos a jogar à bola, por isso se não tivermos mais nada que fazer e quisermos, ora siga lá dar um passeio.
Dizia o psicólogo da escola que António tinha um grave problema de aceitação da autoridade, e uma grave deformação na concepção daquilo que é a importância da norma e da autoridade públicas para garantir a coesão dos corpos sociais. Possuía ainda, uma conceptualização errónea em relação à circunscrição do que podemos decidir pela própria cabeça. Alias, porque o António era um miúdo de 13 anos!
Um dia, a mãe de António esqueceu-se de o ir buscar à escola para almoçar. O António, já habituado a este tipo de situações resolveu fazer aquilo que era considerado um atentado à ordem pública, pensar pela própria cabeça. O gajo tem 13 anos! O gajo não pode decidir e dar um passeio só porque faz sol, merda!. António partiu então na sua demanda existencial, rua fora. Faltavam quinze minutos para começar as aulas, e já tinha estado quase duas horas à espera da mãe. Dizem que é impossível incutir espiritualidade em estomagos vazios, António concordava, tinha considerações muito pragmaticas da moral, achava a moral uma enorme fantuchada, e que era bem mais importante pensar pela própria cabeça, porque já passavam duas horas, mais quatro de aulas, mais meia hora de viagem para escola e antes disso... ah pois não tomou pequeno almoço! Bem isso faz mais de dez horas sem comer. Mas António não sentia dor no estomago, estava plenamente concentrado no assalto à mercearia. A merda do puto! Só se ouve falar na merda desse puto! Pa mas ou o expulsamos daqui para fora ou damos-lhe umas sovas para o meter na ordem se em casa não o metem!
O assalto correu mal, apanhado em flagrante, António saiu da loja a correr e a chorar. Sentiu o peso na consciencia: como Antônio odiava a sua consciencia, o seu coração, para António o seu coração era o elo mais fraco do seu corpo, era a única coisa que o poderia fazer falhar. Para António ter coração é ser se suscecptível de hesitar.
Chegou atrasado às aulas, e não o deixaram entrar na sala. Mais uma aula perdida sem nada que fazer. António recomeçou a chorar. Dizem que as pessoas orgulhosas, narcisistas, egocêntricas não choram facilmente. Mas quando choram, engolem isso tudo, engolem o orgulho, o snobismo, a pompuosidade, engolem tudo, e choram. Ou talvez não. Ou talvez os orgulhosos só chorem quando são crianças e depois com o tempo envolvem-se tanto com o seu orgulho como com o seu desprezo por outrem que deixam de chorar.
A vigilante passou por ele quando ele chorava. Levou-o para uma sala. Fez-lhe uma festa na cabeça. Antônio confessou-lhe que não tinha almoçado: ela ofereceu-lhe um queque vindo do seu pobre salário. António sentiu claramente dentro de si que estava perante uma manifestação de Deus. Raiou um trovão, um laivo de humanismo, perante uma realidade cínica e pragmática. Como o António é ridículo. Deus, António?
Escusado será dizer que uma vez no cumprimento do seu serviço a vigilante foi obrigada a prejudicar António, denuncia-lo por uma malandrice que fez, nem interessa qual, mas custou-lhe, sentia ternura por aquele pobre coitado, que afinal não era mais que um miúdo de 13 anos. António era muito mais que um miúdo de 13 anos, António tinha dentro de si tudo o que mais demoníaco podia ter uma pessoa que tem o pragmatismo tem na ponta da espingarda, e tudo aquilo de mais redentor que um pobre miúdo abandonado pode ter nos seus actos. Para António a situação era clara, a vigilante era uma opressora, estava contra ele, se ele cedesse ao seu laivo de agradecimento pelo queque mais tarde ou mais cedo iria pagar por isso, era altura de agir, de contra-intimidar, de dar a cara, lutar. António à saída da escola partiu o retrovisor da vigilante. Três vezes.
Ok, mas Deus António?