segunda-feira, 28 de março de 2011

Liliana

A Liliana sempre lhe impressionara o pai, por ser comunista e também amante da vida. Um incondicional amante de sua mãe, uma incondicional amante da luxúria. Para ele, era esse o fim máximo da libertacao do comunismo. A Liliana nunca lhe interessara muito as licoes de politica que seu pai lhe tentara incutir, havia sempre um desvio novo na curiosa linha da barba de seu quando falava, uma nova tez da sua pele com a variacao infinitesimal da luminosidade ou um novo zumbido nas redondesas. Parecera-lhe conquanto interessante uma afirmacao que uma vez encontrara perdida num livro de filosofia ‘não te limites a interpretar a realidade, transforma-a’ atribuída a Marx.

A busca de Liliana, como banalmente entre os artistas, era a da autenticidade. Mas para ela, o que era autentico era o que era virgem, puro, fresco. Para quem quer sorver a nascente da sua fonte, que lhe interessa remar sobre ela, convidar outros na margem, fazer um passeio romântico entre beijos ao luar sobre ela. O respeito perfeito pela Arte, entenda-se a compreensão da realidade, e sobretudo o respeito da não interferência, o terminar da ousadia de tentar representa-la, a recusa do paradoxo do jardineiro que ao querer semear a relva a calca. Os artistas, são um embuste dizia, procuram o verdadeiro quando e falso o que criam, não por serem hipócritas conscientemente, mas por intentarem algo fracassado a nascença.

Liliana gostaria de reencarnar, ser uma arvore, longos tempos. Deixar o que a rodeia ganhar a sua própria vida, sentindo-lhe a sua pulsacao, nascer dele como um fruto. Ser um dano colateral do conjunto de matérias e reacoes químicas que a sucederam e alienar-se. Nunca inferir sobre outrem, respeitar o curso natural dos outros, esperando que também eles soubessem por eles descobrir-se como artistas, ou seja, paneis brancos como milhares de pequenos tecidos reunidos mais línguas do que tecidos porque ávidos de saborear a vida, o sabor da vida como milhares de entendimentos possíveis dispersos numa manada de cavalos livres relinchando como se fosse essa a linguagem ultima, a indecefravel, a autoctene, a verdadeira.

Emanuel

Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido, no dia seguinte acordas e na tua memória, seca e morta, só vês a nódoa dos vossos fluídos, como que cavalos que montaram para sucumbir a derradeira barreira. Vulgar e Banal. Humano. Banal portanto. Nunca o materializes, a genuflexão é uma dádiva, protege o teu altar e sê fanático. Ser homem é ser não Deus. Se fôssemos Deus não eramos homens, porque se fôssemos Deus tudo saberíamos; por não tudo sabermos criamos ilusões. Guarda a tua como se fosse o teu hímen antes de um casamento cigano.... Nunca.



Nunca vás para a cama com o teu poeta preferido. E se fores queima a tua casa e mata os teus pais. Veste-te de negro e esconde-te numa viela. Quando vires passar a pessoa certa observa-a, sorve-a, xupa-a em câmara lenta. Persegue-a até ao metro. Senta-te em frente dela e penetra-a pelo o olhar, até te tornares incómodo, até ela se assustar, até lhe cheirares o medo. Cheira-lhe o medo e esboça um sorriso sodomita, aproveita-te, delicia-te. Encosta-lhe a faca ao pescoço como ameaça, procura-lhe a confissão: que a volumetria crescente do seu medo te dê estocadas cada vez mais fortes, para que grites mais, para que vociferes, para que a pessoa a tua frente fique ainda mais apavorada, para que te venhas só da memória dos teus tempos áureos. Depois, entre o pânico da tua vítima, chantageia-a até ela finalmente confessar qual é o seu poeta preferido. E desta vez não faças merda: nunca vás para a cama com o teu poeta preferido.

sábado, 26 de março de 2011

Afonso

Assim é o mundo, assim se enganou o Zeca, disse-me. Os verdadeiros vampiros, não são os génios ocultos na sombra que dominam o povo, os verdadeiros vampiros são também aqueles que são dominados, pela sua animalidade. Esses seres que sugam do planeta vida, torrente, fonte e luz e a transformam, cagando, borrando, secretando, vomitando, em despojos neste ghetto global. A feira, os berros e as histerias, os delírios e as pompas, todos regateiam, todos se movem, primeiro soturnamente como que deambulando, depois animalescamente contra um colchão, ainda sujo dos fluídos ressequidos de outras noites. Parece que, como num quarto fechado ao odor apodrecido das suas manchas, também sobre o mundo paira, esta emanação da bestialidade, do homem besta, do homem vampiro. Dir-se-ia que é a vã cobiça, a tacanhez mundana, mas não, não seremos ingénuos ao ponto de pensar que há algo de imaterial que os consubstancia, a única coisa que os cosubstancia é a sua condição, homem uma vez, homem mil vezes, homem vezes de mais. Assim os seres se entregam àquilo que os ébrios da volumetria do seu pénis consideram ser a dança do quotidiano, mas que a Afonso mais se asssemelha a uma vila saqueada, pela imoralidade e pela desordem. Na família humilde onde nasceu, lavam-se ainda lágrimas da anterior pacatez da vila, ensinava-se os bons costumes e o trabalho, a honestidade e a rejeição da sobranceria: então, como poderia alguma vez o pobre Afonso, quando ainda jovem, aceitar a total acefalitude do seu primo, essa máquina atávica de consumir chocolates e de programas pedagogicos para criancas? Ah, como ele odiava as suas birras que o impediam de estar descansado no seu quarto a ler, e como ele desejava um dia, poder ser livre e morar fora da casa da família e conquistar essa sua liberdade. Seu primo, em tudo se deixaria levar pelo grau zero da humanidade, na sua ansia burguesa de pertencer a algo, os seus pais enchorrilavam o pequeno leitao com todas as actividades extra-curriculares que se podia imaginar, o pequeno leitao um dia tornou-se um porco, e precisou de comer mais, um dia fez-se jovem, e tal como um menino mimado sempre a chorar pela resolução dos pais, também passou a chorar pelo sistema, considerar que era o sistema educativo que o excluía. O 'Pai Estado', o 'Pai Estado' e as suas crianças mimadas, sempre a chorar, sempre a reenvendicar mais um pouco de atenção, mais uma bolsa, mais uma aspiração material, mais um direito. E o trabalho? Por onde se perdeu o trabalho? Por onde ficou a nobreza estoica dos seus antepassados que deixaram a sua pele no campo de tanto a cavarem, e que aprenderam como o suor de sol a sol era o melhor adubo para quem comer os seus próprios frutos. Foi por isto que fizeram o Estado Social? Para não se trabalhar? É esse o comunismo? A revolta dos que aspiram a uma vida acéfala e bohémia? Ide mas é trabalhar, ide libertar-vos desse marasmo, disse-me.