sexta-feira, 11 de abril de 2014

Toda a verdade que encerro: O fim

Caminho em volta dos abismos, pelas estreitas margens que ainda permitem a minha passagem. Certas pessoas admiram-me a coragem, chamam-me visceral, mas poucas ou quase nenhuma seriam as que queriam acordar do meu lado. Sou uma espécie de espécie rara que gostam de visitar numa feira de aberrações, engaiolado à devida distância de segurança das crias. Depois os discursos paternalistas de contingência: ‘vês o que dá meteres-te nas drogas, João, porta-te sempre direito’. É mais fácil culparem as drogas, apesar de eu nunca as ter consumido, porque a ausência de resposta para as minhas perguntas é muto mais aterradora. O cidadão comum prefere caricaturara-me, reduzir-me à insignificância de um conselho tão pobre como o que dá a seu filho.
E a solidão permanece, eu que de tanta coisa me rodeio acabo sempre solitário. A vida é um conceito fictício criado pelo eu, o eu é um conceito fictício criado pelo corpo, mas os corpos são aglomerações da matéria, contingências ridículas e fantasmáticas. Para quem é ateu e não acredita na alma, é atroz observarmos ao canibalismo dos corpos que se munem de uma justificação, dizem ser um eu que precisa de sobreviver, com esse argumento absorvem matéria alheia. O corpo é um violador por natureza, um bandido, um pilhador, um criminoso. O sémen junta-se ao óvulo, cria-se o embrião vampiro de sua mãe, depois o recém-nascido vampiro dos seus pais, depois a criança que come, caga, come, caga e continua a comer, comer, comer tudo o que lhe rodeia quanto pode absorver. É grotesco mas esse corpo ganha formas cada vez maiores na proporção exacta da imoralidade do seu crime. Depois cansado do sangue inocente das suas mãos descobre o abismo, pretende voltar a retribuir ao mundo tudo o que lhe roubou, dispersar-se na largura dos astros, devolver matéria à matéria, unir-se à terra e alimentar as larvas. Uma vez destruída a unidade, a contingência do corpo é destruída e espalhada pulverizada por outros corpos também eles sedentos de matéria embora ainda não conscientes do seu crime. Viver é o acto de ignorância e infantilidade quanto à sua condição de besta insaciável.
Claro que o eu, perniciosa construção do corpo, volve-se em argumentos de medo sobre a morte. Repudia-a e pendura-lhe mitos infindáveis para que o corpo não se destrua, decapitando o eu. O corpo que desejar a morte, tem de saber alhear-se dessa ditadura que o eu lhe crava. E quando a morte caminha, o corpo alheado do eu enche-se de paz, sorri, por encontrar finalmente o descanso de ter que parar de alimentar o eu. Chega um estado de mera contemplação do que lhe rodeia, sem intuitos de comer, foder, beber ou fumar. Entra em sintonia perfeita com o Cosmos. Percebe que lhe pertence a ele mais que ao eu, e se apenas pertence ao Cosmos está sempre acompanhado, se se dispersar em outros corpos continua a fazer parte de outra coisa maior. Morrer é o único acto que permite o fim da solidão e ter por irmão tudo em tudo. Ser. Genuinamente e despojado de qualquer intuito castrador.
Para mim morrer é salvação. Morrer é o fim dos pesadelos, dos suores frios, dos traumas, dos gritos a meio da noite, da infâmia que me percorre o corpo, dos vícios, das ressacas, da humilhação, das ânsias, da dor que me consome todos os dias. Morrer é também o fim do sentimento de revolta por ter sido sempre rejeitado pela sociedade, pela família, pelos pares. Fim da vontade de matar quem me agrediu diariamente. Fim de quem me tratou como bastardo. Fim de ter de habitar as montanhas de Zaratustra. Fim da vontade de dinamitar a ordem societal que me castrou os sonhos. Fim do nojo da minha nudez e do ódio por quem sou. Fim da minha impotência e esterilidade. Fim dos meus sonhos e aspirações ridículas. Morrer é fim. Morrer é paz.

( * * * )

O lobo das estepes entrega-se ao julgamento dos carneiros para que estes possam rejubilar e sentir as suas certezas reforçadas. Há festa no condado. Hoje é dia de alegria. A sua pele dará um bom casaco para o vice-rei.