sábado, 14 de julho de 2012

Marilú


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo para de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.

Lira


Longos séculos correm na sala. Na sala, foram despostos espelhos, assim a sala é um museu puro para quem diz que a Arte retrata a vida. Espelhos e espelhos, espelhos e espelhos, trinta mil espelhos e espelhos que de tanto se reflectirem já são muito mais que trinta mil. É um processo que se itera, vezes sem conta, e detem uma tal capacidade de gestão de informação na sua mecânica que loucos chamam-lhe Deus. Ou pelo menos obra divina. Niilistas dizem: é uma sala apenas. Crua.
Entram seres, carregando como uma longa cauda de um vestido de noiva, todo a sua pomposidade: o seu sentimento de significância. Aí, há um primeiro espelho que capta o seu primeiro passa na sala, depois um segundo reflecte o primeiro espelho enquanto um terceiro reflecte o primeiro passo. Depois um quarto reflecte o segundo espelho e um quinto reflecte o passo do ser a entrar. O drama surge quando o sexto em vez de reflectir o quarto espelho reflecte ou o quinto, ou o passo do ser a entrar, ou os dois em simultâneo. Assim a espiral perde a sua lógica e sequência, torna-se caótica, vertiginosa, delirante. Quando os mecanismos perceptivos do ser finalmente despertam,  já toda a sala é uma caverna onde a identidade do ser ressoa, ressoa, ressoa, ressoa tanto que já treme, que já as paredes abanam e os gritos tornam-se ensurdecedores. Então o ser começa a rasgar loucamente o seu vestido, quer dar o menos possível de corpo ao reflexo, o menos possível de barulho. Despe-se depois. Mutila-se. Continua num frenesim sádico a destruir-se. Continua a querer desaparecer. Continua a amargar todas as fotragafias que tirou, os chãos que sujou, os seus discos rígidos que encheu de pornografia, os postais de férias que mandou á mae. Todo o material que foi alapando à realidade, todo o lixo que foi produzindo, resíduos e resíduos. Então finalmente destrói-se. Torna-se num holograma feito das suas cinzas. Um holograma mais leve que um corpo de carne e a presunção estúpida que o acompanha.
Um poema encontrado no chão diz:
Não conheço a lira.
Na sala dos espelhos voltados uns contra os outros
Na sala onde de tanto se multiplicarem as formas
elas cansam-se e passam a expurgar de si
um holograma feito de fumo magenta,
conheço a corrente magra da sua tinta
conheço o grito crente do papel que se entrega
conheço o raio sinestésico a epifania rídicula
a promessa
a laia
o calor e o cheiro da manhã
três homens julgando não serem homens
mas serem quentes como a terra alentejana
serem soldados como uma pedra num muro
serem entrelaçados como tranças de uma infanta
encontram a sua mãe
morta.

Agora zumbe um silêncio das lâmpadas. Há séculos que a sala está vazia. Os espelhos e as lâmpadas as vezes saem da sala para irem fumar os seus cigarros em varandas. Os espelhos mostram-se pela sua natureza ontológica mais flexíveis. São tolerantes, calmos, dizem que a espera é uma coisa dos tempos, que passará em breve. Já as lâmpadas dizem estar fartas, são intempestivas, irascíveis, sensíveis e ameaçam recorrentemente quebrar o contracto.
Houve um hiato de tempo em que duas lâmpadas se pegaram e as outras todas foram ver a briga. Houve um silêncio na sala. Escuridão profunda. Houve um momento de hesitação neste mundo criado, surgiu o absurdo, surgiu o inesperado como se uma das leis fundamentais da física tivesse sido invalidada e até contrariada. Ligou-se desesperadamente para a televisão e convocaram-se os opinion-makers todos. Um grande forúm internacional de téoricos, meta-teóricos, académicos, aspirantes a académicos, adolescentes apaixonados, adolescentes contestários, mulheres mal-fudidas e um índio. Todos encheram um pequeno segundo antes da resposta se saber, e dentro desse pequeno segundo discutiram horas a fio, escreveram livros sofisticados, educados, articulados, respeitados sobre o que iria acontecer. Nesse segundo eu escrevi este poema:
Recuso-me a viver desligado
Nem que para isso tenha de lamber os dedos
E po-los na ficha de uma parede.
Enquanto o delírio durar
Quero-te perto
Tão perto que a minha pele respire através da tua.
Enquanto o delírio durar
Dá-me a mão
O fim do mundo parece o São João da minha infância.

Claro que tudo ficou estragado. Um académico mais douto de si abriu a porta. Abrindo a porta entrou luz. Eva filha da puta.
As luzes entretanto  voltaram ao seu posto. Descobriram cornos a chorarem, mulheres a comer chocolates, meninos a tirarem catotas, e meninas a tocarem na sua genitália. Rapidamente fugiram de olhos fechados. Fez-se luz, gracejou um espelho engraçadinho.
Séculos e séculos passaram depois como já havíamos relato. Hoje cometi a malandrice de empurrar para lá a lira. Também ela passou pelo caos trágico da sua múltipla ressonância, da caverna a ranger e a reverbrar, também ela agarrou os ouvidos e começou a chorar. Usou-se das suas mais belas metáforas para tornar o seu choro o mais requintado e sofisticado possível. Mas os espelhos não percebem nada de Arte, não ficaram minimamente sensibilizados. Então começou a cortar o seu vestido, foi à lista de todos os seus pintores, escultores, arquitectos, dramaturgos, poetas, romancistas, ligou-lhes a todos.

Olá… sou eu a lira
Era só para te dizer que não vai dar
Hoje olhei-me ao espelho e decidi tomar uma decisão
(fim da chamada, ouvia-se o ‘beep’ do outro lado da linha).

Levou-lhe muito tempo  ligar a toda a gente. No outro dia ligou-me o António Gedeão a dizer que o Manuel Alegre lhe tinha dito que a lira andava a ligar ao pessoal. Menti-lhe e disse que também me tinha ligado, valeu me um desligar imediato do telefone na cara.

Lira
Se me ouves queria te dizer que te quero em mim
Não como minha amante
Não para me elevares à categoria dos que figuram no teu catálogo.
As paredes do meu quarto ganham nódoas que se alastram
O chão do meu quarto ganha pó que me entra nos pulmões.
Não consigo parar de tossir.
Doi-me tossir.
Só queria a tua morfina em doses ponderadas
Porque não quero apagar
Quero estar ainda ligeiramente consciente
Para me poder rir sádico do meu reflexo
E sádico das nódoas
E sádico do pó.
Sentir-me majestoso ainda que eu
Ainda que dentro de mim.